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A CNBB, os católicos e as eleições

Paola Lins de Oliveira

é doutoranda em Antropologia pelo PPGSA/UFRJ e pesquisadora do ISER.

Em entrevista concedida ao Portal Unisinos no último dia 7 de outubro, Dom Luiz Demétrio Valentini, bispo da Diocese de Jales (SP), sentencia “A credibilidade da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está sendo colocada em xeque”[1] . A afirmação contundente se refere ao fato de a instituição estar sendo vinculada a uma frente de oposição aberta à eleição de Dilma Rousseff, candidata à presidência da república pelo Partido dos Trabalhadores – PT.

A “campanha” foi levada a cabo por líderes católicos – bispos e padres – de algumas dioceses e paróquias do estado de São Paulo. Na primeira quinzena de julho[2], o bispo de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini, publica no site da Diocese um artigo intitulado “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, no qual faz uma digressão sobre os limites da “política (César) e a religião (Deus)”. O argumento central do artigo[3] é que atualmente os partidos e governos estão se imiscuindo nos assuntos de Deus, o que conseqüentemente transforma em “dever da igreja intervir convidando a não votar em partido ou candidato que torne perigosa a liberdade religiosa e de consciência ou desrespeito à vida humana e aos valores da família, pois tudo isso é de Deus e não de César”. Bergonzini se refere ao governo do PT que, entre outras medidas, ratificou o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, condenado por alguns setores religiosos sobretudo por incluir a descriminalização do aborto em suas propostas. Por esse motivo, o bispo defende:

“não temos partido político, mas não podemos deixar de condenar a legalização do aborto. Isto posto, recomendamos a todos os verdadeiros cristãos e verdadeiros católicos a que não dêem seu voto à Senhora Dilma Rousseff e demais candidatos que aprovam tais ‘libertações’, independentemente do partido a que pertençam”.

Determinando categoricamente que a postura legítima dos “verdadeiros cristãos e verdadeiros católicos” é não votar em Dilma, o texto faz propaganda eleitoral contrária ao PT e sua candidata. Além disso, inviabiliza o exercício do livre-arbítrio, já que o voto na candidata Dilma deixa de ser uma escolha possível para os “verdadeiros cristãos”.

A iniciativa extrapola os limites da diocese de Guarulhos quando é publicada no site da CNBB Regional Sul I. Nesse momento, ela ganha o status de determinação da CNBB. Além do site, o texto passa a ser distribuído nas portas das igrejas católicas de várias paróquias paulistas.

No final de agosto, uma outra carta, intitulada “Apelo a todos os brasileiros e brasileiras”[4], de autoria da Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul I, assinada pelos bispos dom Nelson Westrupp, dom Benedito Beni dos Santos e dom Airton José dos Santos, e acolhida e recomendada pela Presidência e pela Comissão Representativa dos Bispos do Regional Sul I, é publicada no site da CNBB regional e também passa a ser distribuída nas paróquias locais. A nova carta traz dez considerações que justificam a “recomendação” aos brasileiros e brasileiras “que, nas próximas eleições, dêem seu voto somente a candidatos ou candidatas e partidos contrários à descriminalização do aborto”. Ainda que aqui não condene nominalmente a candidata Dilma, em todas as dez considerações levantadas no texto – que passam por diversos tratados internacionais, projetos de lei, III PNDH entre outras cartas-compromisso em torno da descriminalização do aborto – o principal acusado é o PT, como aparece em uma das considerações:

“considerando como, com todas estas decisões a favor do aborto, o PT e o atual governo tornaram-se ativos colaboradores do Imperialismo Demográfico que está sendo imposto em nível mundial por Fundações Internacionais, as quais, sob o falacioso pretexto da defesa dos direitos reprodutivos e sexuais da mulher, e usando o falso rótulo de ‘aborto – problema de saúde pública’, estão implantando o controle demográfico mundial como moderna estratégia do capitalismo internacional”.

Vê-se aqui que nas recomendações, entre a menção a ações concretas do governo há espaço tanto para conjecturas no nível das ‘teorias da conspiração’ em torno de um ‘imperialismo demográfico’, como também para a desqualificação de uma realidade mais do que comprovada em números e estudos, de que o aborto é atualmente um grave problema de saúde pública que hospitaliza 250 mil [5]mulheres todos os anos no Brasil.

Os dois textos – do bispo de Guarulhos e dos bispos da Comissão em Defesa da Vida da regional de São Paulo – passam a circular intensamente pelas paróquias do estado durante o mês de setembro, sem grande alarde e sem cobertura da grande mídia. A campanha contra Dilma entretanto tem seu ápice no domingo de votação, dia 3 de outubro. Nesse dia, diversos padres e bispos de inúmeras paróquias de São Paulo são instados a não só distribuir os textos entre os fiéis – em desrespeito à lei eleitoral que proíbe a propaganda de candidatos em dia de votação –, como também a inserir a condenação à Dilma e ao PT no sermão, estratégia eficaz para sensibilização dos eleitores que assistiam sua missa de domingo antes do compromisso com as urnas.

Certamente não há instrumento capaz de medir com exatidão o impacto desse estratagema religioso na candidatura de Dilma. Entretanto, o fato é que a candidata recebeu menos votos do que as pesquisas indicavam e que o tema do aborto tomou conta de tudo o que se tem chamado de “debate” nesse segundo turno até o momento. A questão do aborto se torna uma espécie de rótulo, atribuído a este ou aquele candidato como um ‘certificado de má qualidade’, maculando eternamente aqueles que já defenderam ou defendem a sua descriminalização. Mais que isso: despolitiza completamente o debate já que não se explora todos os vieses e implicações sociais do aborto como uma questão de política pública.

Mas diferentemente do que grande parte dos intelectuais e dos comentaristas políticos tem bradado nos meios de comunicação, a opinião dos bispos envolvidos no triste episódio não expressa a voz da Igreja Católica e eles tampouco falam em nome da CNBB, como quiseram fazer entender com seus panfletos e cartas ambíguas. Tanto isso é verdade que toda essa história vem a público justamente quando o bispo de Jales, cidade do estado de São Paulo, portanto também participante da Regional Sul I da CNBB, publica na internet no dia 7 de outubro uma carta pública para denunciar a instrumentalização da questão do aborto para fins eleitorais e também a utilização indevida do nome da CNBB para legitimá-la. Em seu texto intitulado “O desmonte de uma falácia”[6], dom Demétrio Valentini diz que a CNNB, e mesmo a Regional Sul I como um todo, não apóiam a campanha de detração da candidatura de Dilma. Na carta, o bispo afirma:

“Nesta campanha eleitoral está havendo uma dupla falácia, que precisa ser desmontada. Em primeiro lugar, se invoca a autoridade da CNBB para posições que não são da entidade, nem contam com o apoio dela, mas se apresentam como se fossem manifestações oficiais da CNBB. Em segundo lugar, se invoca uma causa de valor indiscutível e fundamental, como é a questão da vida, e se faz desta causa um instrumento para acusar de abortistas os adversários políticos, que assim passam a ser condenados como se estivessem contra a vida e a favor do aborto”.

Logo em seguida, dom Demétrio avalia que a primeira das falácias
“está produzindo conseqüências. Pois no próprio dia das eleições foram distribuídos nas igrejas, ao arrepio da Lei Eleitoral, milhares de folhetos com a nota do Regional Sul 1, como se fosse um texto patrocinado pela CNBB Nacional. E enquanto este equívoco não for desfeito, infelizmente a declaração da Presidência do Regional Sul 1 da CNBB continua à disposição da volúpia desonesta de quem a está explorando eleitoralmente. Prova deste fato lamentável é a fartura como está sendo impressa e distribuída”.

Continuando, o bispo afirma:
“A outra falácia é mais sutil, e mais perversa. Consiste em arvorar-se em defensores da vida, para acusar de abortistas os adversários políticos, para assim impugná-los como candidatos, alegando que não podem receber o voto dos católicos. Usam de artifício, para fazerem de uma causa justa o pretexto de propaganda política contra seus adversários, e o que é pior, invocando para isto a fé cristã e a Igreja Católica. Mas esta falácia não pára aí. Existe nela uma clara posição ideológica, traduzida em opção política reacionária. Nunca relacionam o aborto com as políticas sociais que precisam ser empreendidas em favor da vida. Votam, sem constrangimento, no sistema que produz a morte, e se declaram em favor da vida. Em nome da fé, julgam-se no direito de condenar todos os que discordam de suas opções políticas. Pretendem revestir de honestidade, uma manobra que não consegue esconder seu intento eleitoral”.

Dom Demétrio demonstra claro descontentamento com a utilização equivocada do nome da CNBB na campanha de difamação da candidatura de Dilma. Ele lembra ainda no seu texto a “tradição de imparcialidade” da CNBB frente aos pleitos eleitorais, e clama por um pronunciamento imediato da presidência da entidade para dirimir o equívoco.

No dia seguinte, a presidência da CNBB lança a “Nota da CNBB em relação ao momento eleitoral”[7] na qual se congratula com os eleitores pelo primeiro turno das eleições e em seguida comenta o episódio nas dioceses de São Paulo, sem dar nome aos bois:
“Lamentamos profundamente que o nome da CNBB – e da própria Igreja Católica – tenha sido usado indevidamente ao longo da campanha, sendo objeto de manipulação. Certamente, é direito – e, mesmo, dever – de cada bispo, em sua Diocese, orientar seus próprios diocesanos, sobretudo em assuntos que dizem respeito à fé e à moral cristã”.

Assinada pelo presidente da entidade, dom Geraldo Rocha, o vice-presidente, dom Luiz Vieira e o secretário geral, dom Dimas Barbosa, a carta frisa que “falam em nome da CNBB somente a Assembléia Geral, o Conselho Permanente e a Presidência”, e finaliza com a seguinte declaração:
“reafirmamos ainda que a CNBB não indica nenhum candidato, e recordamos que a escolha é um ato livre e consciente de cada cidadão. Diante de tão grande responsabilidade, exortamos os fiéis católicos a terem presentes critérios éticos, entre os quais se incluem especialmente o respeito incondicional à vida, à família, à liberdade religiosa e à dignidade humana”.

Com essa declaração, a CNBB pretende acabar com todas as dúvidas: os eleitores e eleitoras católicos estão plenamente livres para votar de acordo com a sua consciência cidadã. Porém, apesar da declaração expressa de que a instituição não possui candidato, a exortação final reitera os critérios do “respeito incondicional à vida, à família, à liberdade religiosa e à dignidade humana” que vêm sendo colados indiscriminadamente na discussão sobre o aborto com o viés religioso, para denegrir a candidatura do PT. Ao insistir em critérios ambivalentes de “respeito à vida e à dignidade humana” a CNBB corre o risco de reiterar a condenação da candidatura de Dilma, a despeito do objetivo original do documento.

De todo modo, é preciso lembrar que a Igreja Católica é uma instituição historicamente plural, composta por correntes politicamente conservadoras e por outras progressistas. Exemplos disso podem ser observados nas diferentes agendas sociais de pastorais, como no caso das pastorais da terra e carcerária vinculadas aos direitos fundiários e humanos das populações marginalizadas; e das pastorais da bioética e da família diretamente engajadas em campanhas contra a utilização de células-tronco, a descriminalização do aborto e outros direitos sexuais de mulheres e minorias.

Por esse motivo, independentemente das posições mais ou menos conservadoras que os católicos e católicas eventualmente mantenham sobre o tema do aborto, é necessário complexificar os termos do debate e ampliar a gama de questões a serem discutidas em torno das candidaturas à presidência da República. A condenação religiosa de um candidato com base em um rótulo superficial é uma atitude anti-democrática porque inviabiliza o debate aberto sobre os vários lados que a questão possui. Além disso, é expressão da intolerância diante da divergência de idéias.

Após a reflexão sobre todas essas e outras questões relacionadas à vida coletiva, o eleitor e a eleitora de credo católico, evangélico, candomblecista, espírita, espiritualista, assim como de qualquer outra fé, deve se sentir plenamente capaz de fazer sua opção com liberdade de escolha.

[1] Disponível aqui, consultado em 15.10.10.
[2]Matéria publicada em 4.10.10 no Jornal Valor Econômico, “Regional Sul da CNBB trabalhou contra voto ao PT”, disponível integralmente no Portal Unisinos. Consultado em 15.10.10
[3] Disponível aqui, consultado em 15.10.10.
[4] Disponível aqui, consultada em 15.10.10
[5] Dados: Monteiro, Mario Francisco Giani; Adesse, Leila. (2006), “Estimativas de aborto induzido no Brasil e Grandes Regiões (1992-2005)”. Caxambu: Anais da Associação Brasileira de Estudos Populacionais. Disponível aqui, consultado em 16.10.10
[6] Disponível aqui, consultado em 13.10.10.
[7] Disponível aqui, consultado em 14.10.10.