André Rodrigues
é doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ) e pesquisador associado do ISER.
No dia 30 de agosto de 2010 ocorreu, em Brasília, o processo eleitoral para a escolha de representantes dos trabalhadores do setor e da sociedade civil para a ocupação das cadeiras do Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), no biênio 2010-2012. Esta eleição representa um passo que não deve ser subestimado no que diz respeito ao aprofundamento da linguagem democrática como via de consolidação das políticas nacionais de segurança pública. A democratização do modo pelo qual as políticas de segurança devem ser pensadas e operacionalizadas é uma agenda que se tornou um imperativo para a estabilização de nossa república. A eleição dos representantes que atuarão no CONASP para os próximos dois anos tem seu lugar na história de realização de tal agenda.
A data dos finais de agosto deste ano é menos um acontecimento estanque do que a culminância de um movimento que requer um olhar mais alongado em termos de perspectiva temporal de apreciação da conformação de valores e significados no campo do poder público. Ainda que carente de refinamento histórico para a interpretação desse processo, proponho uma breve reflexão que define dois marcadores – como deflação da noção de “marco” – que pretendem inserir a recente eleição para o CONASP no trabalho intenso e já longevo de consolidação de uma agenda democrática no campo da segurança pública: o debate travado a partir dos meados anos 1980 e a realização da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública, em 2009.
O que caracteriza o primeiro marcador que mobilizo é a emergência do debate sobre segurança pública como tema de pesquisas e reflexões – tanto teóricas quanto aplicadas – no campo das ciências sociais. O olhar especializado sobre a gestão pública no Brasil, bem como sobre os aspectos constitutivos de nossa vocação como república, tiveram que abandonar perspectivas generalistas e que tinham como modo explicativo a reforma social e política, principalmente, em seus aspectos econômicos, e adotaram uma perspectiva que tinha a questão da violência como foco particular. Os avanços em alguns setores da vida pública – como a democratização do regime via estabilização do sistema eleitoral – não foram suficientes para solucionar as mazelas experimentadas no campo da segurança pública. A consolidação da democracia brasileira é um processo discutido amplamente em vista de suas fragilidades: o que os estudiosos interessados em análises sobre a violência e a segurança pública trouxeram para essa reflexão foi a identificação da necessidade de estudos que primassem pela análise desse tema como uma fragilidade fundamental de nosso processo democrático[1].
Essa mudança na agenda do debate público não partiu, contudo, meramente do câmbio de interesses investigativos dos cientistas, mas decorre também da aproximação das agendas de pesquisa daquelas defendidas pela sociedade civil organizada que também emerge como ator público de modo mais intenso no Brasil no mesmo período. O olhar, tanto de cientistas quanto de militantes, voltado para o tema da segurança pública converge, ainda, com a incorporação de uma linguagem de cidadania e direitos, principalmente, direitos humanos por estes atores. O que era uma temática passou a ser, portanto, interpretada como assunto estratégico para a realização de nossa vida republicana porque a disseminação de dinâmicas e vetores produtores de violência colocou em cheque a própria estabilidade e legitimidade de nossas instituições.
A adesão tardia à questão da violência como problema de nossa democracia – além de apresentar uma contradição (quase um paradoxo) em relação à experiência da democracia e do espaço público no Brasil, caracterizando um aspecto de cisão espacial e de produção de anomia que contribui para a configuração de uma república sem demos – decorreu de um duplo niilismo, tanto à direita quanto à esquerda. Os direitistas se afastavam da agenda de democratização das instituições de segurança pública porque nutriam uma visão na qual esta esfera da vida republicana possuía uma tarefa meramente repressiva e pertinente à estabilização democrática somente se considerada sob este prisma. Os esquerdistas consideravam que a reforma social com a redução das desigualdades produziria automaticamente uma pacificação das formas de sociabilidade no espaço público brasileiro. Ambas as vias tradicionais de reflexão sobre a questão da violência tiveram seu alcance reduzido pela intensa disseminação de variadas formas de violência no território brasileiro, fazendo com que as contradições dessas perspectivas se tornassem evidentes.
Ocorrida mais de sessenta anos depois da primeira Conferência Nacional de Saúde[2], a primeira CONSEG, a despeito das críticas – todas muito pertinentes – das instituições do movimento social (o que justificou, ainda, uma fraca adesão desses movimentos ao processo conferencial), representa um segundo marcador significativo do aprofundamento da democratização das instituições de segurança pública no Brasil. O significado desse avanço se amplia, sobretudo, se consideramos que o Estado no Brasil é frequentemente um animador da sociedade e que isto representa, a priori, um pecado capital em contradição com a democracia[3]. Sem se colocar acima e afora da esfera da sociedade civil, o Estado brasileiro operou um movimento de abertura interna que pretende acolher e vocalizar um processo que se desencadeia a partir de nosso primeiro marcador reflexivo. O processo participativo teve suas fragilidades que não devem ser desprezadas, mas que não retomarei aqui para não desviar o foco da breve reflexão que proponho.
Além dos princípios e diretrizes consolidados pela conferência como pauta de orientação da política nacional de segurança pública, a 1ª CONSEG abrigou o momento de publicação do decreto que instituiu o CONASP provisório, encarregado de organizar as eleições ocorridas neste agosto, entre outras atribuições. A criação do CONASP por decreto foi muito criticada pela sociedade civil, principalmente, porque seus representantes compunham a Comissão Organizadora Nacional da 1ª CONSEG, convidados pelo Ministério da Justiça e que se tornaram membros natos do Conselho. Este foi um artifício adotado pelo Ministério da Justiça como via de recriar um CONASP que, ainda que existisse formalmente, era inativo e inoperante.
O processo eleitoral de agosto inaugura um novo momento do CONASP no qual seus conselheiros foram eleitos democraticamente. Doze cadeiras foram disputadas no campo da sociedade civil: seis para entidades, seis para fóruns, na busca de uma representação mais plural. Ainda que os processos de mobilização e legitimidade padeçam de algumas fragilidades de mesmo tipo das que afetaram a ocorrência da CONSEG, o processo teve como característica o estabelecimento de abertura de canais de diálogos entre as instituições concorrentes que pretendem se prolongar como modo de fazer da gestão eleita no processo (a lista de entidades eleitas pode ser acessada em ww.conasp.gov.br. A expectativa é que estas interlocuções que culminaram na eleição dos fóruns e entidades se aprofundem e dêem o tom da participação da sociedade civil no CONASP durante o biênio 2010-2012.
Tendo em vista que o aprofundamento do campo democrático no tocante à segurança pública é um processo ainda relativamente recente, é importante que a futura gestão do CONASP tenha como uma de suas preocupações o refinamento da atuação do conselho em vista do processo de diálogo com o movimento social e com os profissionais do setor. Os termos da mobilização e organização da segunda CONSEG serão um termômetro desse aperfeiçoamento. É imperativo que o CONASP abra seus canais de ausculta e busque uma interlocução local mais fina para que seja legítimo e que tenha vigor em sua atuação.
O quadro das instituições eleitas pela sociedade civil difere de modo considerável da composição das instâncias indicadas pelo Ministério da Justiça na formação do CONASP provisório. Isto já é um indicativo de um processo de mobilização que contém a dissonância entre o modo pelo qual o governo vê sociedade civil e a maneira pela qual ela busca se representar: tal distância é saudável e fundamental.
No campo das entidades, o ISER – Instituto de Estudos da Religião vai dividir uma cadeira com o INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos. Tanto o primeiro quanto o segundo instituto, ao participarem do processo, reiteram suas vocações na contribuição do processo de democratização das instituições no Brasil. Todas as entidades e fóruns eleitos estão afinados com os processos de diálogo para além das fronteiras do conselho. Essa é uma aposta que pretende representar mais um passo para a consolidação de nossa democracia. Como pesquisador do ISER e como representante deste para a cadeira do CONASP, tenho orgulho de participar de mais este movimento. Este orgulho não despreza, entretanto, a consciência das fragilidades do processo e dos desafios que os conselheiros terão pela frente, aspectos que tentei identificar em linhas muito gerais nesta breve reflexão.
[1] Cabe pontuar aqui que o ISER teve um papel importante na consolidação dessa agenda sediando alguns dos primeiros estudos sobre o tema no Brasil.
[2] Esta conferência ocorreu em 1941.
[3] A oposição entre Estado e sociedade é uma premissa de uma linguagem política liberal-racional com relação a qual nossa linguagem republicana frequentemente se encontra em descompasso. Seria um equívoco considerar que essa tradição liberal-racional captura a totalidade das possibilidades de atualização da democracia na modernidade.