Christina Vital da Cunha
é drª em ciências sociais pelo PPCIS/UERJ, profª. adjunta antropologia cultural da UFF e colaboradora do ISER.
Nota sobre o Ensino Religioso nas Escolas Públicas do Rio de Janeiro
Em recente nota pública, um grupo de pesquisa ligado à Pós-Graduação em Educação da UERJ, junto com outros ativistas e pesquisadores, trouxe à baila mais um capítulo da acintosa implementação do Ensino Religioso no estado do Rio de Janeiro. A nota repudiava a distribuição de uma cartilha produzida por organismos internacionais ligados à Igreja Católica no X Fórum de Ensino Religioso (ER) promovido pela Secretaria de Educação do estado. Tratava-se do manual chamado “Chaves para a Bioética”. Nele foram ativados argumentos que contrapõem a natureza à cultura. Assim, afirmam, por exemplo, que o natural é a formação de relações heterossexuais, dado que somente uma conjunção carnal do homem com uma mulher é capaz de gerar filhos. Conforme já analisava o sociólogo Antonio Flávio Pierucci, em 1990, no artigo “Ciladas da Diferença”, a direita e, mais recentemente, os ativistas conservadores religiosos produzem narrativas intolerantes baseadas em oposições binárias, quase sempre referidas a uma dada noção do que seria a natureza, o natural. Sendo assim, defendem, com base na Bíblia, uma escritura considerada sagrada para os cristãos, e em argumentos calcados em sua representação de natureza, que a relação aceitável seria a heterossexual. Não desenvolveremos aqui uma relativização desse ponto de vista porque já o fizemos na publicação Religião e Política, lançada em março de 2013. Interessa-nos aqui revelar as ciladas que estão em jogo com a produção e distribuição de uma cartilha como essa, que apresenta no ambiente escolar como UNIVERSAIS pontos de vistas/valores que são SETORIAIS, ou seja, que expressam as doutrinas de uma matriz religiosa específica e que se chocam com valores HUMANOS, como o respeito aos direitos fundamentais, individuais da pessoa.
Esse tipo de colocação que articula moralismos e conservadorismos fundados em diferentes argumentos vem provocando reações no âmbito político e social que visam a denunciar essas como práticas intolerantes e que atentam contra os direitos humanos não só das minorias diretamente atingidas, mas de toda a sociedade. Mais ainda, esses posicionamentos fundados em preceitos religiosos e que ora se apresentam com roupagens científicas, da ordem da natureza, nos trazem questionamentos, tais como: o que está por trás de tamanha insensibilidade para as graves violências que são cometidas contra crianças e adolescentes em ambiente escolar em razão de suas convicções religiosas e/ou de suas orientações sexuais? O que faz com que religiosos e políticos ligados a grupos de direita no Congresso Nacional retirem de circulação um material didático para o qual foram investidos quase dois milhões de reais e que visava extirpar preconceitos e coibir a violência contra a população LGBT dentro e fora da escola, como fizeram com a suspensão do Material do MEC de combate à homofobia na escola em 2011? Como as religiões que advogam para si um estatuto sagrado podem insistir na intolerância ao genuíno de cada ser?
A implementação do Ensino Religioso no Rio de Janeiro foi alvo de uma série de embates políticos e sociais. Desde 2000, seja através de Audiências Públicas na Assembleia Legislativa do Estado, seja em seminários e workshops, políticos e religiosos, pesquisadores e ativistas, todos reunidos, expressavam contundentes argumentos em favor e contra o ER na escola pública, em favor e contra o ensino confessional ou em perspectiva histórico-filosófica. O ISER participou de vários desses encontros e produziu pesquisas que resultaram na Comunicações do ISER, nº 60 sobre os projetos de lei em disputa e, finalmente, aquele a entrar em vigor no Estado. A complexidade das questões tratadas remetia ao debate, ainda em franca efervescência, sobre o que configura o Estado Laico ou qual o Estado Laico que queremos ter/ser.
No entanto, o que o caso levantado pelo Grupo de Pesquisa Ilé Oba Òyó, do PROPED-UERJ, em relação ao ocorrido no X Fórum de Ensino Religioso (ER) promovido pela SEEDUC é grave, é urgente!
É preciso refletir novamente sobre qual a função da religião na escola a fim de tentar responder alguns questionamentos. Qual a importância do estado financiar o concurso e contratação de mais de mil professores de religião nesses 10 anos? Quais os resultados disso para a sociedade? Um dos principais argumentos acionados por lideranças religiosas e por parte da sociedade nos debates públicos sobre o tema é que o ER nas escolas se justificaria por ser a religião um fomentador elementar de comportamentos, de uma mentalidade civilizada, ajustada aos padrões de civilidade, aos marcos da civilidade. Ora, a religião não é uma representação, é uma PRÁTICA. E se as religiões estão praticando violência ao insuflarem ódios, ao estimularem a incompreensão e o desrespeito, como defender a sua presença em um ambiente tão fundamental para a formação do ser nas sociedades modernas? Como lhes reconhecer a sacralidade, a sua “função social”?
Assim, subscrevemos e reforçamos que “O lamentável ocorrido exige mais do que a simples crítica e podemos fazer mais. Podemos exigir que sejam recolhidos todos os manuais que já chegaram às escolas e impedir que cheguem mais. Podemos denunciar a SEEDUC por homofobia ao Ministério Público (e vamos fazer). Podemos chamar ativistas, sindicatos, associações, universidades, parlamentares, estudantes, funcionários e docentes que apostam no avanço das conquistas que fizemos e não em seu contrário. É o que esperamos com essa nota. O SEPE-RJ já aprovou moção de repúdio contra o manual em congresso, realizado no último fim de semana” (Grupo de Pesquisa Ilé Oba Òyó, do PROPED-UERJ).
Nós, do ISER, estamos tornando público o nosso posicionamento contrário às arbitrariedades que instituições religiosas e professores de religião (funcionários públicos) vêm tomando e que chegam ao conhecimento da sociedade através notas como essas e de inúmeras pesquisas analisando a implementação do Ensino Religioso Brasil a fora. Sendo assim, nos somamos aos mais diferentes atores sociais na defesa do respeito aos valores UNIVERSAIS, aos direitos humanos na escola pública e na sociedade como um todo.