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Caso Favela Nova Brasília e ADPF 635: o Estado brasileiro segue descumprindo medidas para enfrentar a violência de Estado

No dia 24 de maio, o Ministério Público Federal (MPF), por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), realizou a Reunião Pública – ADPF 635 e a Prevenção da Responsabilidade Internacional do Brasil.

O objetivo foi discutir as garantias de não repetição previstas pela Corte Interamericana no Caso Favela Nova Brasília e refletir sobre os impactos da ADPF 635 na prevenção da responsabilidade internacional do Brasil.

Além de atuar como amicus curiae na ADPF 635, é organização co-peticionária do Caso Favela Nova Brasília, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em conjunto com Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL).

Na ocasião, as organizações realizaram um discurso de denúncia das recorrentes violências do Estado no Caso Favela Nova Brasília.

Confira a íntegra do discurso de Nina Barrouin, co-coordenadora da área da Direitos e Sistemas de Justiça do ISER, e Lucas Arnaud, advogado do CEJIL, durante a audiência

“Bom dia, meu nome é Nina Barrouin e aqui represento o Instituto de Estudos da Religião e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, organizações da sociedade civil que representam, diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pessoas que tiveram suas vidas diretamente impactadas pela violência de Estado, no caso que ficou conhecido como “Favela Nova Brasília”, que ensejou a responsabilização internacional do Estado brasileiro pelas violações de direitos perpetradas por seus agentes.

Desde a publicação da sentença do caso, em fevereiro de 2017, o Estado brasileiro, tanto no âmbito federal quanto o estado do Rio de Janeiro, vêm sistematicamente descumprindo as medidas de reparação determinadas pela Corte Interamericana em sua decisão, o que é motivo de preocupação da sociedade civil e da comunidade internacional, agravado pelo recrudescimento da violência policial, que segue atingindo territórios periféricos e negros. 

O descumprimento das medidas de reparação também foi reconhecido pela Corte Interamericana em suas últimas resoluções no bojo do processo de supervisão da sentença. Nesses termos, entendemos a centralidade de espaços de diálogo como esse, mas esperamos que as colocações aqui apresentadas pela sociedade civil e movimentos sociais reverberem em ações concretas por parte do Estado brasileiro. 

Cabe ressaltar que a ADPF 635 e o Caso Favela Nova Brasília guardam profunda conexão, tendo em vista que denunciam a dinâmica estrutural da violência policial, que atinge sistematicamente famílias negras. Nesses termos, fica nítido que a manutenção da violência policial enquanto uma realidade cotidiana dos territórios de favelas e periferias se dá através do acumpliciamento de diversas instâncias do poder público. As medidas determinadas pela Corte Interamericana na sentença do Caso visam, nesse sentido, combater gargalos que corroboram para a manutenção desse cenário de violação estrutural de direitos. Além disso, parâmetros e determinações da Corte Interamericana  fundamentam a ADPF 635, bem como, servem de orientação para as decisões do Supremo Tribunal Federal. Por fim, frisa-se que, infelizmente, assim como o Estado brasileiro segue sem cumprir a esmagadora maioria das medidas determinadas pela Corte, o estado do Rio de Janeiro descumpre sistematicamente as decisões do Supremo Tribunal Federal.

Aqui, iremos, brevemente, apresentar o estado de (des)cumprimento das medidas determinadas pela Corte, em especial, as que se relacionam diretamente com a ADPF 635, frisando, contudo, que todos os pontos resolutivos têm relação com a ADPF, na medida em que visam a reparação e a não repetição dos fatos narrados no Caso.

O ponto resolutivo décimo sétimo da sentença da Corte, que determina o estabelecimento de metas e políticas de redução da letalidade e violência policial no Estado do Rio de Janeiro, também foi reforçado e expressamente determinado em decisão cautelar pelo Ministro Relator da ADPF 635, que ordenou a elaboração do Plano de Redução da Letalidade Policial. Nesse contexto, o processo de elaboração do plano foi marcado por vícios procedimentais graves, notadamente em relação à interdição da participação da sociedade civil e de órgãos de Estado como a Defensoria Pública e o Ministério Público. Além disso, o Decreto nº 47.802 seguiu perspectiva jurídico-política oposta àquela que orienta a decisão da Corte Suprema e todo o desenvolvimento da ADPF n 635. Assim, o documento reafirmou a legitimidade do uso de violência bélica em territórios periféricos do Rio de Janeiro, calou sobre a relação entre racismo e letalidade policial, não apresentando providências para interditar a seletividade racial da atuação policial, e reforçou a ideologia da inocência, demarcando que algumas vidas não merecem ser protegidas. Ainda em processo de discussão ante o Supremo, a elaboração do Plano nesses termos de forma alguma pode ser compreendida como um passo para o cumprimento da resolução da Corte.

Também segue pendente de cumprimento o ponto resolutivo décimo sexto da Sentença internacional, que orienta a criação de mecanismos normativos para que casos onde ocorra morte, tortura ou violência sexual decorrente de intervenção policial sejam investigados por órgão independente. O descumprimento sistemático do referido ponto resolutivo é apresentado pelo Estado enquanto uma questão eivada por um empecilho formal: a ausência de marco normativo no plano nacional que possibilite o desenvolvimento de investigações independentes. Afirma-se que, por mais que o Ministério Público exerça o poder investigatório, esse não o pode fazer de forma exclusiva,  mas sim como uma atividade de cooperação em relação às autoridades policiais. 

Nesse sentido, resta nítido que o Estado reconhece o descumprimento do ponto resolutivo. Destacamos que na esfera nacional, no âmbito da ADPF 635, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou reforçando a referida determinação da Corte Interamericana, não cabendo o argumento de ausência de normas domésticas para subsidiar o estabelecimento de investigações independentes em casos nos quais houver suspeita de envolvimento de agentes de Estado. 

Em 10 de março, o CNMP criou um grupo de trabalho com funcionamento previsto por 180 dias para “elaborar proposta de Resolução para disciplinar as investigações do Ministério Público nos casos de mortes, torturas e violências sexuais no contexto de intervenções policiais”, em observância às decisões do STF e da Corte Interamericana. Contudo, não fomos formalmente informadas nem chamadas para contribuir nesta reflexão, o que destoa do entendimento da Corte a respeito da participação das vítimas no cumprimento das medidas de reparação determinadas pela mesma.

O ponto resolutivo décimo nono, que determina a participação formal e efetiva de vítimas ou seus familiares na investigação, também não pode ser considerado cumprido. Objetivamente, no bojo dos desdobramentos à nível nacional da sentença do Caso, restou nítido que iniciativas como a Resolução CNMP nº 201/2019 não estão sendo aplicadas no funcionamento cotidiano do Ministério Público. A despeito da justificativa da Resolução fazer referência ao Caso Favela Nova Brasília e aos parâmetros internacionais, a resolução foi frontalmente descumprida em relação ao tratamento conferido às próprias vítimas do caso, questão que já foi informada à Corte e que não será aprofundada aqui em razão da sensibilidade das informações pessoais das partes envolvidas. Além disso, o Estado segue sem apresentar dados que permitam uma avaliação sistêmica de como vem se dando a aplicação da normativa nacionalmente. 

Em relação ao ponto resolutivo décimo quinto da sentença internacional, destaca-se que até o presente momento não se verifica a existência de publicação anual que apresente dados relativos às mortes ocorridas durante operações policiais em todo o país e os resultados das suas investigações. As ações dos órgãos elencados pelo Estado, a saber: Conselho Nacional do Ministério Público, da Secretaria Nacional de Segurança Pública e do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, não resultaram, até o presente momento, na elaboração e publicação de dados atualizados, de amplitude nacional, sobre a questão. 

No que diz respeito ao ponto resolutivo décimo oitavo da sentença internacional, que determina a implementação de programa ou curso sobre atendimento de mulheres vítimas de estupro no estado do Rio de Janeiro, as organizações representantes das vítimas consideram que a presente medida possui escopo amplo, demandando a criação de um programa que efetivamente reformule o atendimento a mulheres vítimas de estupro no estado e que os detalhes relativos a tal programa devem ser debatidos com a sociedade civil,  processo que até o presente momento não foi sequer iniciado .

Reforçamos que os demais pontos resolutivos da sentença também possuem conexão com a ADPF 635, e que há graves problemas no que diz respeito ao fornecimento de atendimento psicológico e psiquiátrico às vítimas e familiares de vítimas, às medidas de justiça para investigar, processar e, caso pertinente, punir os  responsáveis pelos fatos relacionados às incursões  de 1994 e 1995, ao ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, e à determinação de uniformização da expressão  “lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial” nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público. Em relação às indenizações, saudamos a iniciativa do Governo Federal em retomar o diálogo para dar cumprimento à medida e esperamos que os trabalhos avancem, sendo necessário, em espaço apropriado, um debate de fôlego sobre as problemáticas envolvendo as chamadas Ações de Cumprimento de Obrigação Internacional (ACOIs).

Dito  isso, agradecemos mais uma vez a participação nesse espaço e seguimos à disposição, e acompanhando as próximas intervenções.”

Assista a audiência completa.