Um novo relatório de violações de direitos humanos foi apresentado à Anistia Internacional, movimento global que trabalha para que os direitos humanos sejam respeitados em todo o mundo, na sua última visita ao Rio de Janeiro. O documento, intitulado Os muros nas favelas e o processo de criminalização, foi entregue ao coordenador da Anistia Internacional para Assuntos Brasileiros, Tim Cahill, pelo presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), deputado Marcelo Freixo (PSOL), na sede da OAB-RJ.
O encontro promoveu um interessante debate entre, aproximadamente, 20 organizações sociais e de defesa dos direitos humanos que ajudaram na construção do relatório que abordou os seguintes temas: a construção de muros para isolar as favelas do Rio; a violência armada para o extermínio da população das favelas; o avanço das milícias; a tortura, superlotação e maus tratos nas unidades prisionais e sócio-educativas do estado; chibatas nos passageiros dos trens, a perseguição policial ao funk e ao hip-hop; choque de ordem; o cerco contra movimentos sociais.
Participaram da elaboração e da apresentação do relatório o ISER, a Justiça Global, o MST/RJ, o Centro de Assessoria Jurídica e Popular Mariana Crioula, Rede Rio Criança, Projeto Legal, IDDH, Apafunk, Lutarmada Coletivo de Hip-Hop, Visão da Favela Brasil, Faferj, PACs, Mandato Marcelo Freixo, Associação pela Reforma Prisional, Direito Pra Quem? (DPQ), Observatório de Favelas, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, CDDH – Petrópolis.
Ao ISER coube o texto sobre a construção de muros nas favelas (o relatório completo está disponível em www.marcelofreixo.com.br/site/index.php). André Luiz Rodrigues, cientista político que trabalha nas áreas de Sociedade Civil e Violência Urbana do ISER, escreveu um artigo sobre o tema:
Os Muros nas favelas
Os números da violência no Rio de Janeiro, que são frequentemente divulgados na imprensa e em relatórios de pesquisa, traduzem uma situação alarmante. Diante de um quadro complexo de fatores que se coadunam para a deflagração de conflitos, temos testemunhado a execução de algumas políticas públicas que são pouco legítimas e ineficazes na solução dos problemas para os quais se dirigem. Um projeto de construção de muros em torno de favelas do Rio de Janeiro está na pauta das políticas do Governo do Estado. Vamos à métrica deste projeto.
Três metros de altura com um comprimento inicial de 3,4 quilômetros ao redor das favelas da Rocinha, Pedra Branca e Chácara do Céu – com obras já licitadas – e 634 metros já em construção no Morro Dona Marta: eis algumas medidas destes muros. Treze comunidades compõem a lista das que o Governo pretende murar. Onze ficam na Zona Sul, em áreas nobres da cidade: Pavão-Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, Chapéu Mangueira, Rocinha, Babilônia, Cantagalo, Morro dos Cabritos, Vidigal, Parque da Cidade, Benjamim Constant e Dona Marta. O projeto do Governo do Estado consiste na construção de muros ao redor de favelas que estariam avançando em áreas de Mata Atlântica. O governador do Estado intitulou a iniciativa de “eco-limites”.
A preocupação com a preservação de áreas de Mata Atlântica deve, sem dúvidas, constar na pauta dos órgãos de governo. Mas, se avaliarmos este tipo de projeto tendo como critérios sua eficácia e sua legitimidade, concluímos que estes muros representam um equívoco e que podem contribuir para a formação de “sócio-limites”, no lugar dos “eco-limites” propostos.
Em primeiro lugar, o projeto pode acirrar as tensões entre a população moradora de áreas de favela e a classe média que vive próxima destas áreas. A ampliação do sentimento de segurança que a construção dos muros promove, entre as camadas médias, pode ter como contrapartida o aprofundamento de diversos estigmas que são postos sobre a população moradora de favelas. Quando se promete que aquelas favelas não crescerão mais, através de um dispositivo meramente mecânico (um muro), a preocupação com as questões sociais que permeiam o problema fica fora da discussão. Este tipo de política pública traz no arraste de seus efeitos a difusão de uma visão simplificadora sobre temas cuja gravidade demanda abordagens mais abrangentes.
Muitos estigmas nascem da atribuição de imagens exageradas ou simplificadas aos sujeitos sobre os quais incidem. Não há como refutar a preocupação quanto à ocupação de áreas de Mata Atlântica. Mas a expansão das favelas não diz respeito apenas à preservação ambiental. É uma questão complexa que não pode ser tratada sob a lógica pouco sofisticada da construção de muros de contenção.
Quando um muro é construído para conter ou separar pessoas pode estar em jogo a produção de formas de segregação social e espacial. De acordo com o Dicionário Aurélio, o verbo murar apresenta os seguintes significados: “1. Cercar ou vedar com muro ou tapume; amuralhar. 2. Defender contra assaltos; fortificar. 3. Servir de muro a: Uma cerca viva murava a casa. 4. Cobrir, fortalecer, defender, contra ataques de qualquer natureza: Conseguiu murar a pessoa contra assédios importunos. 5. Fortificar-se, defender-se, cobrir-se, abrigar-se. 6. Cercar-se ou cobrir-se com qualquer coisa que possa livrar de dano. 7. Revestir-se, prevenir-se: Misantropo, necessita murar-se de paciência para agüentar um bate-papo.” Murar, nestes termos, é um verbo carregado de sentido no que diz respeito à proteção contra uma ameaça. O que informa o significado dessa ação é a definição do inconveniente contra a qual se dirige: no caso dos muros ao redor das favelas, ainda que sejam destinados à proteção da Mata Atlântica, define-se que o elemento ameaçador é a população que ali vive. No limite, a construção destes “eco-limites” reitera o campo semântico do termo “favela” como sinônimo de perigo em relação à sociedade e à natureza.
Nosso dicionário apresenta, ainda, outros significados ao verbo murar quando o remete à sua raiz latina mure: “1. Caçar (ratos). 2. Espiar ou espreitar ratos para caçá-los”. Esta definição do termo nos faz lembrar que, em alguma medida, estes muros se relacionam com uma estratégia de segurança pública voltada para a asfixia das áreas de favela.
Tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, no século XIX, as políticas de sanitarização, contribuíram para a difusão da imagem da pobreza como doença, sujeira e promiscuidade. Estas políticas, além de removerem os moradores de cortiços para áreas afastadas, se relacionam com as origens de empreendimentos imobiliários voltados para as elites. Este é o caso dos condomínios de luxo de São Paulo que se separam da favela de Paraisópolis por uma linha tênue formada por seus muros. A imagem destes muros é a própria metonímia da segregação espacial e social que atravessa o processo de urbanização de nossas grandes cidades. A construção de muros, que impliquem na imposição de limites entre as favelas e o restante da cidade, dialoga com problemas históricos que manifestam mais um aspecto de suas configurações recentes.
Além do delicado problema social relacionado à produção de estigmas e ao aprofundamento de dinâmicas de segregação, o projeto do Governo do Estado, apresenta inconsistências em relação à sua eficácia. As favelas da Zona Sul apontadas no projeto possuem percentuais de expansão horizontal inferior ao total do crescimento das áreas de favela do Estado, entre 1999 e 2008, que foi de 6,8%, segundo dados do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP). As comunidades do Parque da Cidade e de Benjamim Constant tiveram uma taxa de crescimento igual a zero. O Morro Dona Marta decresceu em 0,78%. Soma-se a isso o fato de que a construção de muros de contenção não contribui em nada para a resolução das dinâmicas que pressionam a ocupação das áreas de Mata Atlântica por estas favelas. Trata-se, portanto, de uma política de preservação ambiental pouco eficaz, que mantém inalteradas as tensões pertinentes ao quadro de fragilidade urbana do Rio de Janeiro. Em 2004, Luis Paulo Conde, então secretário estadual de desenvolvimento urbano e meio ambiente, propôs um projeto semelhante que foi rechaçado pela imprensa e pela opinião pública e, por isso, não foi levado adiante. O atual projeto, igualmente polêmico, deve ser amplamente debatido com a população da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, com os moradores das favelas atingidas por esta política.
A preocupação com o crescimento das favelas deve ter como pilares o combate à pobreza, o acesso a direitos e uma política habitacional abrangente. A construção de muros expressa uma postura do poder público que lida de forma imediata com os efeitos de problemas graves da cidade, sob o argumento de que atuar nas causas demanda um tempo não disponível em vista da urgência da situação presente.
Há ainda questões relativas à legitimidade do projeto de construção dos muros. No dia 13 de abril de 2009, foi divulgada uma pesquisa feita pelo Datafolha, na qual 47% por cento dos pesquisados foram favoráveis à construção de muros e 44%, contra. Mas esta aprovação não pode ignorar o plebiscito feito pela associação de moradores da Rocinha, no dia 25 de abril de 2009, no qual 1056 pessoas rejeitaram o projeto e apenas 50 pessoas o apoiaram. Não pode haver uma política pública efetivamente legítima que se estabeleça prescindindo do diálogo com as pessoas sobre as quais incidem diretamente seus efeitos. A consulta ampla à população das favelas que ocupam áreas de Mata Atlântica deve ser uma premissa das formas de aplicação de políticas públicas voltadas para este tipo de ocupação irregular. Este mesmo princípio deve se impor à formulação destas políticas.
Construir muros para conter expansão de favelas é uma iniciativa pouco justificável no que se refere à sua eficácia, por sua articulação com as causas do problema que busca combater. Seus canais de consulta e diálogo para produção de legitimidade também são fracos ou quase inexistentes. Se o Caveirão é sintoma de uma política equivocada praticada no Brasil, em vista de sua vinculação ao Yellow Mellow, que hoje se encontra no Museu do Apartheid, na África do Sul, os muros em torno das favelas do Rio de Janeiro se vinculam, em alguma medida, àqueles de Paraisópolis.