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Atrás do tempo perdido: a primeira Conferência Nacional de Segurança Pública e o déficit democrático na discussão sobre Segurança Pública no Brasil

André Luiz Rodrigues

Contato: arodrigues@www.iser.org.br

Há muito que os interessados na discussão sobre a segurança pública no Brasil perceberam que é urgente que este tema seja tratado do ponto de vista do debate democrático. Isto porque a violência se tornou mais que um problema para a democracia: é um problema da democracia no Brasil. O resultado é uma situação de violações de direitos fundamentais em larga escala, o que coloca em cheque a democracia pela afinidade que a segurança pública no Brasil possui com as características do estado de exceção. Seja a democracia uma ficção ou não, o fato é que ela tem como corolário o estabelecimento do convívio pacífico entre os cidadãos (aquilo que a política moderna em seus fundamentos definia como a saída do estado de natureza para o estado de sociedade). O trunfo – e também o calcanhar de Aquiles – da democracia como invenção política é sua capacidade de pacificação da vida social. Esse talvez seja (mais do que seus modos de produção de justiça) o ponto axial da reflexão sobre a democracia.

O que está em jogo nessa reflexão não é a petição de que, dado o nome de Estado de Democrático de Direito a um regime específico, esteja estabelecida a priori determinada configuração social. Ao dizermos, porém, que vivemos em um Estado Democrático de Direito definimos algo a ser perseguido e evocado através de algumas palavras – (ou valores) – chave: direitos, deveres, igualdade, cidadania são algumas dessas palavras que pautam (ou devem pautar) a agenda pública se estamos falando de viver em um regime democrático. Se a segurança é um bem público em nosso estado democrático, sua gestão e operação têm de ter compromisso com essa carteira de valores que fundamentam a democracia. Se tratamos de um problema da democracia, parece razoável que as vias de solução desse problema sejam tratados dentro do escopo democrático (até porque os cenários alternativos são pouco promissores: optaríamos entre a barbárie, a radicalização da via autoritária e qualquer outro caminho que necessite negar todos os mecanismos disponíveis e fundar novos meios).

Depois de décadas de gestão das políticas segurança pública sob a ótica da força e da repressão, a sociedade começa a perceber que esta abordagem é ineficaz, além de representar uma contradição do Estado Democrático de Direito. Desde contextos nos quais a falta de zelo das autoridades em relação a este aspecto da vida pública produz situações de absoluto despreparo e extrema fragilidade institucional, até cenários nos quais a violência define dinâmicas sociais lastimáveis, senão dramáticas, é longo o rosário a desfiar para concluirmos que algo está errado no modo de conduzir as políticas de segurança pública no Brasil. Muitas vozes fazem coro ao dizer que o erro reside no frágil vínculo entre a segurança pública e a democracia. O que parece importante, neste sentido, não é a afirmação da democracia como modelo ideal reificado (com base em uma crença muitas vezes exagerada em seu potencial procedimental), mas sim a criação de vias participativas que reforcem o pertencimento da sociedade à esfera pública e que tornem os bens públicos (como a segurança) efetivamente públicos.

Durante os dias 27 e 31 de agosto de 2009, Brasília foi palco de um debate inédito no Brasil: a realização da discussão entre policiais, guardas, gestores de segurança pública e sociedade acerca dos princípios e diretrizes que pautarão a política nacional de segurança pública.

A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG) representou uma oportunidade de caminharmos na direção da democratização do campo da segurança pública e, assim, aprimorarmos o próprio experimento democrático brasileiro. Passado o evento – o aspecto episódico do que pode se tornar um acontecimento com alguma relevância para a história – é possível iniciarmos o debate sobre suas contribuições e entraves.

Para uma reflexão inicial sobre a 1ª CONSEG, nestes termos, considero fundamentais duas dimensões: uma metodológica (ou seja, em que medida os mecanismos metodológicos adotados contribuíram para a construção de um processo democrático participativo) e outra substantiva (acerca das dinâmicas dos debates e das propostas aprovadas).

O aspecto metodológico mais notório e mais frequentemente contestado, sobretudo, por representantes da sociedade civil, pelo que pude observar, diz respeito à paridade estabelecida entre gestores, trabalhadores de segurança pública e sociedade civil. Os parâmetros que definem que 30% dos participantes sejam de gestores, outros 30% de trabalhadores de segurança pública e 40% da sociedade civil, acaba por definir uma situação na qual 60% dos participantes são operadores de segurança pública, fazendo com que a sociedade civil estivesse sub-representada.

Em termos substantivos, o resultado desta distorção de paridades resultou em um predomínio dos operadores de segurança pública no que concerne ao estabelecimento de pautas de discussão. Um indício dessa sobre-capacidade dos operadores de segurança pública em pautar o debate se refere à diretriz aprovada com maior votação (1095 votos): trata-se de uma proposta cuja defesa e articulação partiu expressamente de agentes de segurança pública, especificamente, agentes penitenciários. Segue o texto da diretriz aprovada:

“1. 6.6 A – Manter no Sistema Prisional um quadro de servidores penitenciários efetivos, sendo específica a eles a sua gestão, observando a proporcionalidade de servidores penitenciários em policiais penais. Para isso: aprovar e implementar a Proposta de Emenda Constitucional 308/2004; garantir atendimentos médico, psicológico e social ao servidor; implementar escolas de capacitação.”

Além de demonstrar a sobre-representação dos operadores de segurança pública, a aprovação desta diretriz, a meu ver, define uma manifestação perversa da distorção nas paridades, porque caminha na direção contrária àquela da retórica da democratização, que atravessa, inclusive, o discurso institucional da conferência (expresso em seu texto-base) no que define, por exemplo: a necessidade da compreensão da segurança pública como um assunto que não diz respeito apenas às polícias. O trato dos problemas relativos ao sistema penitenciário brasileiro tendo como primeira prioridade a criação de mais uma polícia, a polícia penal, representa um passo atrás no debate. Dificilmente, encontraríamos a aprovação da referida Proposta de Emenda Constitucional como necessidade mais urgente, caso houvesse uma pesquisa de percepção entre os participantes da 1ª CONSEG, no que diz respeito à solução dos graves problemas enfrentados pelo sistema penitenciário brasileiro. Nesta mesma pesquisa hipotética, ao perguntar sobre os principais problemas da segurança pública no Brasil atual, poderia apostar que a não aprovação da PEC 308/2004 sequer figuraria entre as dez primeiras prioridades.

Credito, dessa forma, a aprovação desta diretriz como mais votada à sobre-representação dos profissionais de segurança pública o que permitiu que eles tivessem maior capacidade de pautar o debate.Mas não é somente a aprovação desta diretriz que definiu o desequilíbrio entre os profissionais de segurança pública e a sociedade civil. As quatro primeiras diretrizes mais votadas têm conteúdo voltado para interesses específicos de profissionais de segurança pública. Com isto não quero dizer que estas propostas não possam ter repercussão nos interesses da sociedade civil. São, contudo, diretrizes que pouco refletem a necessidade de integrar abordagens que ultrapassem a modelagem institucional das instâncias policiais. A primeira, já referida, trata da criação da polícia penal, a segunda mais votada versa sobre a autonomia dos peritos de polícia, a terceira define condições de trabalho dos Bombeiros Militares e a quarta do exercício do ciclo completo de polícia pelas instâncias policiais federais e estaduais.

Somente na sétima diretriz mais votada figura a preocupação com a criação de políticas preventivas no lugar das atuais políticas reativas e meramente repressivas. Mesmo assim, o texto desta diretriz apresenta como solução básica uma prática que em algumas cidades do Brasil tenta se afirmar como modelo: o policiamento comunitário. Esta diretriz é, ainda, omissa no que diz respeito à necessidade de ausculta e participação constante da sociedade como premissa para um sistema de segurança pública efetivamente preventivo e democrático. No texto desta diretriz que reproduzo abaixo, é possível reparar na prioridade de aspectos de caráter estritamente policial, mesmo quando se trata do enfoque na prevenção da violência.

“7. 5.2 C – Desenvolver e estimular uma cultura da prevenção nas políticas públicas de segurança, através da implementação e institucionalização de programas de policiamento comunitário, com foco em três aspectos: um, dentro das instituições de segurança, com estudos, pesquisas, planejamento, sistemas de fiscalização e policiamento preventivo, transparência nas ações policiais, bem como a própria reeducação e formação das forças policiais; reduzindo a postura militarizada; dois, com programas educativos de prevenção dentro das escolas, famílias, movimentos sociais e culturais e a comunidade como um todo; três, apoiados no desenvolvimento de redes sociais e intersetoriais para a criação de uma ampla rede de prevenção e segurança.”

É possível destacar diversas das diretrizes aprovadas como manifestações da predominância do enfoque policial no debate, mas isso ultrapassaria os limites desse pequeno relato, que nem de longe pretende esgotar o debate sobre a 1ª CONSEG. Uma última diretriz aprovada, contudo, merece ser destacada como sintoma da desproporção polícias/sociedade civil: a oitava diretriz mais votada que trata da regulamentação das Guardas Municipais como Polícias Municipais. Aqui, mais uma vez, uma diretriz que pretende nortear a política nacional de segurança pública preconiza a criação de mais uma força policial. O mais grave é que esta nova força policial seria criada a partir de uma instituição apontada por grande parte da bibliografia especializada como estratégica para a criação de políticas preventivas menos focadas na ação policial: as Guardas Municipais. Há algum tempo que muitas vozes tentam alertar para o fascínio que as polícias, sobretudo as militares, exercem sobre as guardas. Aqui pode-se interpretar que está expresso o desejo dos guardas municipais de se tornarem policiais, contrariando o que seria o grande diferencial desta instituição na difusão de uma postura preventiva.

O que deveria constar na agenda de discussões como a despolicialização da reflexão sobre segurança pública, dando lugar à sua politização – e aqui quero defender a despolicialização não como a exclusão do enfoque policial no tratamento do tema, o que seria uma temeridade, mas sua flexibilização e abertura para a integração com outras esferas da arena pública – foi substituído pelo tema da desmilitarização das polícias. Este tema, ainda que esteja presente na agenda defendida pela sociedade civil, foi debatido, na 1ª CONSEG, segundo uma articulação cuja polarização envolveu principalmente os oficiais de Polícia Militar, de um lado, e os praças desta instituição, de outro. Entre os dois pólos desta configuração, situavam-se os representantes das Polícias Civis e da sociedade civil, fazendo a balança pesar a favor da desmilitarização, posição defendida pelos praças de Polícia Militar.

Pelo que pude observar, este debate foi conduzido sob o ponto de vista de uma reforma institucional das polícias e não segundo as demandas da sociedade civil no sentido de inserir as instituições policiais no cenário do Estado Democrático de Direito, em relação ao qual o militarismo policial representa um descompasso.

Obedecendo a mesma dinâmica do tema da desmilitarização, a discussão sobre o cumprimento do ciclo completo de polícia ganhou centralidade no temário e produziu o mesmo tipo de polarização, desta vez, opondo policiais militares e civis. Os policiais militares defenderam a atuação de sua corporação em ciclo completo de polícia, cumprindo função investigativa em crimes de pequeno potencial ofensivo. Os policiais civis se posicionaram contra a proposta, alegando que as Policias Militares não seriam competentes para atuar em ciclo completo. Mais uma vez, o debate teve um caráter excessivamente corporativo, pouco contribuindo para as tarefas finais da conferência.

A questão do ciclo completo de polícia sugere, ainda, outro problema; este de caráter metodológico. Entre as diretrizes aprovadas, há duas que são absolutamente contraditórias entre si: a quarta diretriz mais votada aprova a atuação em ciclo completo, enquanto a décima quinta diretriz mais votada define o “Rechaço absoluto à proposta de criação do Ciclo Completo de Polícia”. Permanece uma incógnita como esta contradição será contornada, já que todas as diretrizes aprovadas norteiam aquilo que será a política nacional de segurança pública. Outras diretrizes também apresentam contradições, o que pode produzir a impressão de que a política nacional de segurança pública terá um caráter pouco orgânico em relação às demandas da sociedade e um tanto esquizofrênico.

As interpretações que sugiro aqui podem, contudo, ter um caráter um tanto míope. Isto devido aos meus limites interpretativos e também a outro aspecto metodológico questionável. Cada grupo de trabalho – momento no qual era travado o debate, efetivamente, democrático – se restringia a refletir sobre questões relativas aos seus eixos temáticos. Esta limitação teve impacto sobre a possibilidade de um debate mais amplo, sobretudo, no que diz respeito à possibilidade de cada participante interferir nas discussões de ouros eixos temáticos. Os momentos interativos (foram dois) seriam a ferramenta metodológica destinada a superar esta dificuldade, não fosse o fato de serem pouco… interativos. No primeiro momento interativo, os participantes poderiam ler e sugerir correções e glosas aos textos das propostas elaboradas em cada sala dos grupos de trabalho. Pelo que pude observar, no entanto, estas correções, sugestões e glosas, pouco foram assimiladas na reformulação das propostas nos grupos de trabalho. O segundo momento interativo, por sua vez, talvez não pudesse, sequer, ter esse nome como ferramenta metodológica, uma vez que representou meramente um momento de votação nas propostas. Não considero uma votação o mais interativo e participativo dos mecanismos democráticos. A ausência de um momento de ampla discussão democrática sobre todos os eixos talvez tenha favorecido o estabelecimento de dinâmicas corporativas e demasiado setoriais que tiveram reflexo nos princípios e diretrizes aprovados, alguns dos quais propus debater neste breve relato.

A interpretação geral que proponho, por fim, diz respeito ao fato da 1ª CONSEG ter sido um evento cuja retórica propôs o caráter de um chamado democrático, mas que pouco refletiu a diversidade de opiniões e demandas presentes nos debates promovidos cotidianamente pela sociedade civil. Alguns aspectos de caráter metodológico e substantivo foram aqui tratados de modo preliminar e excessivamente breve. Outras discussões devem ganhar a arena pública. Deste debate contínuo e reflexivo serão, realmente, definidos quais os legados da 1ª CONSEG.

A esta interpretação geral, somo o descontentamento de muitas instâncias da sociedade civil em relação à conferência, manifesto, inclusive, na postura de muitos seguimentos de (o eu considero um erro) boicotar, e esvaziar a conferência. Em uma reunião ocorrida durante a conferência, os seguimentos da sociedade civil presentes buscaram manifestar seu descontentamento, sobretudo, no que diz respeito ao estabelecimento do novo CONASP, pelo Decreto nº 6.950/09, que define como desdobramento da 1ª CONSEG a nomeação dos componentes de sua Comissão Organizadora Nacional como membros provisórios do Conselho. Os ânimos de protesto que deram o tom do início da reunião foram dirimidos pela coordenação nacional da 1ª CONSEG que respondeu às críticas dos presentes e terminou aclamada pela plenária. A pouca contundência das posições da sociedade civil que marcou, como tentei mostrar, o tom da conferência também esteve expressa nesta frágil manifestação de descontentamento com a conferência.

Os aspectos aqui avaliados não buscam, contudo, negar o importante passo representado pela 1ª CONSEG. Acredito que a principal – e mais imediata – mudança provocada pela conferência foi a vocalização de demandas e agendas de setores das polícias que se encontravam, há muito, isolados. Para muitos dos profissionais de segurança pública ali presentes, esta foi a primeira experiência na qual puderam expor de modo aberto e livre suas opiniões. Não podemos subestimar o avanço representado por este aspecto. Teria sido mais profícua, contudo, esta contribuição se a 1ª CONSEG tivesse garantido às vozes da sociedade civil maior capacidade de promover pautas e interlocuções no debate. A manutenção da maioridade penal, por exemplo – preocupação fundamental da sociedade civil e uma de suas principais bandeiras –, foi garantida apenas na trigésima terceira diretriz mais votada.

Estas são apenas algumas questões passíveis de cobrir neste breve relato, outros debates são necessários e eu mesmo pretendo aprofundar alguns pontos e realizar uma discussão mais profunda e detalhada sobre os dez princípios e quarenta diretrizes aprovadas na 1ª CONSEG.

O colaborador do ISER Andre Luiz Rodrigues é mestrando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro – IUPERJ e participante do Laboratório de Estudos em Teoria Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Teoria Política e Filosofia do Direito.