Uma audiência pública realizada no dia 03 de abril, no galpão do Centro de Artes da Maré, reuniu representantes do poder público, moradores e organizações do Complexo da Maré, além de diversas instituições da sociedade civil, para o encaminhamento de propostas sobre o processo de ocupação da Maré para a implantação de uma UPP na região. A reunião contou com a presença do secretário de estado de segurança pública, José Mariano Beltrame, que compôs a mesa com Eliana Souza, diretora da Redes da Maré, Átila Roque, da Anistia Internacional, Osmar, presidente da Associação de Moradores do Timbau e o subprefeito da região que substitui Eduardo Paes, que não pode comparecer. O evento foi convocado por um conjunto amplo de organizações da sociedade civil de dentro e de fora da Maré (Associações de Moradores do Conjunto de Favelas da Maré, Conexão G, Redes de Desenvolvimento da Maré, Observatório de Favelas, Vida Real, Luta pela Paz, Lia Rodrigues Companhia de Danças, Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela , Iser – Instituto de Estudos da Religião, Anistia Internacional Brasil, NIAC/PR5/UFRJ, Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ, OAB/RJ).
Eliana Souza abriu a seção relatando que o objetivo do encontro era pactuar um conjunto de ações e posturas políticas que garantam que não haja violações de direitos no processo de ocupação. Propôs, para este fim, que fosse assumido um compromisso pela secretaria de segurança com a criação de um protocolo, pactuado com a participação dos moradores e organizações da Maré, que oriente e enquadre a atuação policial. Ela ressaltou, ainda, que, desde 2009, se ocupa de buscar o diálogo com o poder público para pautar o tema da segurança pública na Maré e que a audiência pública também tinha o significado de manifestar a voz da Maré. Pautando o compromisso da secretaria de segurança no processo de diálogo, ela afirmou que não quer ser expectadora, quer participar e quer o secretário de segurança como interlocutor. Esta cobrança decorreu do anúncio de que a partir da sexta-feira, 04 de abril, as forças armadas assumiriam a coordenação do processo de ocupação da Maré. Eliana relatou que têm ocorrido abusos na atuação policial na ocupação da Maré, sobretudo, no que diz respeito às formas de abordagem.
A representante da Redes da Maré apresentou, ainda, um conjunto de propostas, resultantes de um diálogo entre as organizações da Maré, para embasar os protocolos de atuação das instituições de segurança pública:
_ Que as ações dos agentes de segurança pública obedeçam à legalidade e a preservação do direito à vida. Quanto a esta proposta, foi ressaltado que os agentes de segurança pública estão circulando sem identificação.
_ Que as prisões e apreensões sejam decorrentes de mandatos judiciais individuais. Esta proposta foi uma recusa ao emprego de mandatos coletivos emitidos pela justiça na última semana.
_ Que seja observada a necessidade de privilegiar as ações de inteligência e o controle do uso da força como diretrizes do policiamento, evitando o excesso de abordagens policiais que é uma fonte de atritos e um risco para os desvios de conduta e ações abusivas.
_ Que as abordagens policiais não sejam pautadas por critérios discriminatórios, sejam raciais, de gênero ou geracionais, e que observem as cláusulas do Estatuto da Criança e do Adolescente.
_ Que sejam implantadas ações de mediação de conflitos articuladas com as organizações locais. Quanto a isso, foi noticiado que há uma proposta em elaboração de construção de uma ouvidoria comunitária para lidar com os casos de abusos e violações por parte dos agentes do estado.
_ Que haja reuniões periódicas entre a coordenação do processo de ocupação, com presença do secretário de estado de segurança pública, e as organizações e movimentos locais, com frequência semanal, no primeiro mês, e quinzenal, a partir do segundo mês.
_ Realização de um seminário, na sexta-feira, dia 11de abril, com as organizações da sociedade civil, de dentro e de fora da Maré, para o aprofundamento das propostas apresentadas e do debate sobre o direito à segurança pública.
Quanto aos temas e propostas apresentados, o secretário Mariano Beltrame, se comprometeu a estar presente nos espaços de diálogo sugeridos e que também não se afastará da condução e coordenação do processo de ocupação. Disse, ainda, que a partir do dia 07 de abril, será instalado um serviço de ouvidoria móvel na Maré para apuração dos casos de abuso. Beltrame frisou que já mantém um diálogo constante com as organizações e lideranças da Maré. Ele reconheceu que houve abusos e desvios na atuação policial no processo de ocupação, mas os considerou residuais e produto de processos históricos que não podem ser revertidos tão facilmente. Como forma de controlar esses abusos, ele se comprometeu a participar do processo de construção de protocolos conjuntos para a atuação policial. Disse, ainda, que a Coordenadoria de Polícia Pacificadora – CPP já está encarregada da realização de cursos de mediação de conflitos para as tropas empregadas nas UPPs.
Átila Roque, da Anistia Internacional, ressaltou em sua intervenção que a Maré não pode ser tratada como território de exceção e que deve ser priorizada a viabilização da participação ativa das organizações e moradores da Maré nos mecanismos de denúncia e controle externo. “A Maré é complexa, nós sabemos, mas a Maré tem uma história muito rica de ativismo e participação”, disse.
O presidente da associação de moradores do Timbau, Osmar chamou a atenção para a necessidade de que sejam aportados serviços públicos de qualidade na Maré, para além da ocupação militar, e frisou que a abordagem policial tem que ser uma questão muito bem trabalhada.
Na rodada de debates aberta ao público, Jailson Silva, diretor do Observatório de Favelas, indicou a necessidade de que se dê atenção ao tema da regulação da vida e do cotidiano no processo de implantação da UPP. “O que não pode é sair um dono e entrar outro. E isso a gente não aceita!”, afirmou, se referindo ao risco de que as forças policiais e militares se coloquem como protagonistas no processo de regulação da vida pública na Maré.
Marielle Franco, da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ, em sua intervenção, se contrapôs à percepção de que a ocupação da Maré teria sido bem sucedida, como havia afirmado o secretário Beltrame em fala anterior. Ela frisou que houve um jovem morto no processo de ocupação e que, mesmo que a morte não tenha decorrido diretamente da intervenção policial, isso torna a operação insatisfatória.
Pedro Strozenberg, secretário executivo do ISER, se manifestou se referindo a dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, a necessidade de que os processos de formação policial para atuação nas UPPs tenham uma proposta continuada e que garanta que não se reproduza um dilema clássico da atuação policial: o divórcio entre a formação e as práticas. A esse respeito, ele ressaltou que o emprego do Batalhão de Operações Especiais – Bope na condução de processos formativos para os policiais do Complexo do Alemão representa um retrocesso. O Bope simbolizaria, segundo Pedro, práticas policiais que se afastam completamente do escopo necessário para a atuação eficaz, eficiente e legítima, nas UPPs. Isso representaria o risco de que as narrativas do confronto e do uso excessivo da força, ainda predominantes na cultura profissional da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ganhem força e se sobreponham às possibilidades de mudança do significado da atividade policial que o policiamento de proximidade exige. Em segundo lugar, como consequência disso, Pedro propôs que não seja repetido o ritual de se hastear as bandeiras do Bope e do Choque no processo de ocupação. “Não devemos criar respostas simbólicas belicistas no contexto de crise e acirramento das tensões nas UPPs. Não podemos recriar xerifes e donos do morro. Temos que priorizar a construção de novas narrativas como um desafio fundamental para a mudança”, disse.