Conheça a atuação dialógica e contra a intolerância da Mãe de Santo brasileira que completaria 127 anos de nascimento esta semana
A história das lutas sociais destaca algumas pessoas como símbolos para além do tempo de sua vida, por causa da sua maneira única de agir sobre a realidade. Uma delas é Maria Escolástica da Conceição Nazareth, mais conhecida como Mãe Menininha do Gantois. Esta ialorixá brasileira, que esta semana completaria 127 anos, liderou por 64 anos a mais conhecida casa de candomblé do país, a Ilé Ìyá Omi Àse Ìyámasé, ou Terreiro do Gantois, em Salvador.
Descendente de africanos aqui escravizados, ainda criança foi escolhida para ser Ialorixá do terreiro, fundado em 1849 por sua bisavó, mas só assumiu definitivamente a liderança aos 28. Em tempos de crescente intolerância religiosa no Brasil, sobretudo contra religiões de matriz africana, a trajetória de vida de Mãe Menininha do Gantois é uma inspiração na busca por melhores caminhos coletivos.
Confira a seguir cinco maneiras pelas quais esta importante liderança candomblecista contribuiu com a promoção da diversidade religiosa, a difusão da cultura e do conhecimento sobre as tradições afro-brasileiras, além do fortalecimento do espírito democrático entre comunidades de fé.
1. Articulação do término das restrições a cultos impostas pela Lei de Jogos e Costumes de 1930
Entre os anos 1930 e 1970, eram comuns as chamadas “batidas policiais”, incursões em terreiros que apreendiam objetos, agrediam e prendiam sacerdotes, sacerdotisas e seguidores das religiões afro-brasileiras. A Delegacia de Jogos, Costumes e Diversões Públicas era responsável por autorizar a realização de rituais e limitava o seu horário de término às 22 horas. O órgão foi amparado pela Lei de Jogos e Costumes de 1930.
Essas incursões policiais só acabaram em 1976, quando o então governador da Bahia, Roberto Santos, sancionou um decreto liberando as casas de Candomblé da obtenção de licença e do pagamento de taxas à Delegacia de Jogos, Costumes e Diversões Públicas. Mãe Menininha foi fundamental neste processo, sendo uma das principais articuladoras pelo fim da perseguição formal e informal ao candomblé.
2. Abertura das portas do terreiro Gantois para brancos e adeptos de outras religiões
Os terreiros de candomblé visam praticar aquilo que ensinam. A generosidade e a igualdade são baluartes de muitas religiões e inspiraram a atuação de Mãe Menininha do Gantois. A líder espiritual abriu as portas do terreiro para brancos e adeptos de outras comunidades de fé, como o catolicismo. Ela não só promovia a boa convivência entre as diversas crenças, como entre diferentes classes sociais.
A ialorixá recebia muitas pessoas em situação de vulnerabilidade e sempre oferecia café ou comida aos visitantes, fossem eles pobres ou chefes de Estado. Sua filha caçula, Mãe Carmem e atual ialorixá do terreiro, ressalta inclusive a influência de outras religiões sobre Mãe Menininha do Gantois: “queria que fôssemos batizados e fizéssemos a primeira comunhão na Igreja Católica”.
3. Convencimento de bispos católicos à aceitação da entrada de mulheres com as roupas tradicionais das religiões de matriz africana nas igrejas
Segundo crenças rituais do candomblé, vestir o orixá é dar-lhe uma forma, uma identidade, ligá-lo a uma cor, a um conjunto de insígnias. Portanto, apesar dos significados dos costumes variarem de acordo com os terreiros, turbantes, colares, pulseiras e peças de roupa sempre foram importantes meios de resgate cultural da identidade negra.
Ciente desta relevância, Mãe Menininha do Gantois convenceu diversos bispos baianos a permitirem a entrada de mulheres – inclusive ela – vestidas com as roupas tradicionais das religiões de matriz africana nas igrejas. Isso também porque ela frequentou durante um tempo igrejas católicas e nunca deixou de assistir às celebrações de missa.
4. Estímulo ao encontro e promoção do respeito entre todas as religiões
Muito além do reconhecimento às crenças, ela estimulava a convivência construtiva entre diferentes comunidades de fé. Candomblecistas, católicos, evangélicos, judeus, umbandistas, entre outros segmentos religiosos, só poderiam se respeitar ao conhecerem e reconhecerem a essência da humanidade que os une. Nisso acreditava a mãe de santo, que construía pontes entre vários universos no seu jeito de agir dentro do terreiro e também fora dele.
Mãe Menininha do Gantois entendia que a formação social da população brasileira é uma mistura de todas as raças e religiões. Portanto, ela não buscava apenas fazer valer o princípio da diversidade religiosa na sua forma de atuar, mas também o utilizava como um meio de tirar o candomblé da condição de desconhecimento e preconceito e elevá-lo ao status de uma das principais religiões do país.
5. União da oralidade e saberes tradicionais com conhecimentos acadêmicos
Boa parte dos saberes produzidos pelas religiões de matriz africana é compartilhada pela linguagem oral. Esta expressão de espiritualidade por meio da oralidade é inerente às práticas culturais dos povos da diáspora africana. Reconhecida como uma natural construtora de pontes, Mãe Menininha acreditava ser necessária uma política de diálogo entre esses saberes e os conhecimentos das instituições do mundo moderno, como a academia.
Para ela, a ocupação das instituições era também um modo de conquistar afirmação para a população negra brasileira. Não por acaso sua postura dialógica é reconhecida por pesquisadores como o professor Lívio Sansone, do Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo o pesquisador, ela “era uma mensageira entre dois mundos: o mundo da casa de santo e o mundo da sociedade mais ampla”.