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Iser articula-se a movimentos sociais em defesa de um Estado efetivamente laico

A laicidade do Estado e o enfrentamento do fundamentalismo religioso são temas gêneses do Iser, instituição que, ocupando um lugar fronteiriço entre os movimentos sociais e a esfera científica, desde a sua origem atua em direção ao fortalecimento dos direitos humanos e à consolidação da democracia.

Comprometido com estas causas, o Iser promoveu, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, uma reunião ampliada, nos dias 12 e 13 de novembro, para discutir o fundamentalismo religioso e o Estado laico com os principais movimentos, organizações e redes que atuam direta ou indiretamente com essas temáticas, tais como o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Observatório da Laicidade na Educação (OLE), Fórum Nacional de Religiões de Matriz Africana, Movimento Estratégico pelo Estado Laico (MEEL), Justiça Global, Terra de Direitos, Fundo Brasil de Direitos Humanos, Plataforma Dhesca Brasil e Rede Feminista.

Disputa política

A primeira pauta do encontro foi uma discussão sobre as fortalezas e fraquezas em relação à afirmação do Estado laico, em contraposição à ofensiva fundamentalista que utiliza argumentos semelhantes. Neste sentido, inicialmente, foi colocada a importância de se reconhecer que a laicidade é um conceito em constante disputa, para, a partir daí, se construir um dissenso político coerente e coeso.

Tatiana Lionço, professora da Universidade de Brasília (UnB), identifica duas correntes que polarizam a concepção de Estado laico: uma defende a paz civil, pregando a tolerância, e a outra caracteriza-se por um higienismo antropológico, dividindo o mundo entre o bem e o mal. Esta segunda corrente corresponde aos grupos fundamentalistas, que, no Brasil, há pelo menos três décadas vêm ocupando espaço no poder público de forma intensa e silenciosa, no parlamento, em cargos executivos, e em canais de televisão. Como consequência, verifica-se o acirramento do Estado penal e do controle dos direitos sexuais, de modo que a responsabilização estatal passa a ser substituída pela lógica da culpabilização individualizante.

Tatiana Lionço

Lionço também alerta para a capilaridade do discurso fundamentalista, que está para além do religioso, por isso, muitas vezes é sutil e difícil de reconhecer. Neste sentido, ela defende a urgência de uma outra dinâmica de diálogo para se lutar pelo Estado laico, com a participação ativa das diversas vozes da religião, de modo que se construam narrativas que primem pela justiça social.

A religião na legislação

Fábio Leite, professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), esclareceu que Estado laico não é ateu, mas deve respeitar Deus e as religiões, independentemente da legislação em vigor. No Brasil, a pesar de a Constituição de 1891 ter instituído o princípio da separação entre o Estado e a Igreja, retirando da Igreja Católica o título de religião oficial, o direito público ainda é permeado de influências religiosas. Em 2009, o Congresso Nacional aprovou a concordata, acordo inalterável entre o Estado brasileiro e o Vaticano, no qual o Brasil se compromete a destinar nos planos diretores dos municípios espaços para fins religiosos de ação da Igreja Católica, além de reconhecer às instituições assistenciais religiosas igual tratamento tributário e previdenciário garantido a entidades civis semelhantes. A concordata prevê ainda a colaboração entre a Igreja e o Estado na tutela do patrimônio cultural do país, preservando templos e objetos de culto. O tema mais polêmico desse acordo é a instituição do ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental, sendo de matrícula facultativa, cabendo a cada estado onerar ou definir o caráter do ensino, confessional ou interconfessional. Leite defende o ensino religioso interconfessional ou confessional, neste caso, desde que não seja remunerado, pois ensinar as regras de determinada religião é interesse privado, não público. O Rio de Janeiro, por exemplo, adotou o confessional, enquanto São Paulo, o interconfessional ou confessional não remunerado.

A concordata endossou o desequilibrou do tratamento das religiões por parte do Estado e, em resposta aos protestos de representantes religiosos, este ano foi aprovada a Lei Geral das Religiões. Esta lei visa garantir tratamento isonômico a diferentes religiões, a partir de normas sobre ensino religioso, casamento, imunidade tributária, prestação de assistência espiritual em presídios e hospitais, garantia do sigilo de ofício dos sacerdotes, entre outros temas. Em relação ao debate da laicidade, a Lei das Religiões é criticada por não estabelecer que o Estado brasileiro é laico e por não retirar a educação religiosa do currículo.

Violações de direitos humanos

Outra discussão que emergiu nesta reunião ampliada foi sobre os significados da crescente ofensiva política e social de grupos religiosos fundamentalistas para os direitos das minorias sexuais, religiosas e raciais. Apesar de ser reconhecido como um país de pluralidades, em que as diversidades convivem harmonicamente, o Brasil lida com manifestações de desrespeito e violação dos direitos dos que professam religiões não hegemônicas, como as africanas, as indígenas, ciganas e de imigrantes, ou dos que não professam religião. Segundo Márcio Marins, do Fórum Nacional de Religiões de Matriz Africana, as religiões de matriz africana são as mais atingidas pela intolerância religiosa, tendo muitos casos de invasão e depredação de seus terrenos. As investigações, no entanto, não apontam como causa a violência. Diante desse cenário, Marins coloca que a maioria de pessoas de religião de matiz africanas tem vergonha e/ou medo de declarar a própria religião.

Márcio Marins identifica dois fatores que têm dificultado, sobremaneira, a garantia dos direitos das minorias. Um é o discurso dos fundamentalistas religiosos, que, em nome de um deus e sob a justificativa da liberdade de expressão, discriminam e cometem violências. O outro fator é a crescente criminalização dos movimentos sociais e as ameaças aos defensores de direitos humanos. Marins, na contramão, aposta na integração e articulação das redes de diretos humanos, como foi o espaço proporcionado por esta reunião ampliada.

Luiz Antônio Cunha, coordenador do Observatório da Laicidade na Educação, aponta a burocracia eclesiástica como um outro aspecto relevante que contribui com a reprodução da intolerância religiosa. Nessa mesma direção, Cunha retoma a discussão sobre a concordata, sustentando a ameaça que este acordo representa para a laicidade do Estado, na medida em que submete a atividade educacional à prática religiosa e, consequentemente, tende a oprimir direitos sexuais e reprodutivos, e a liberdade religiosa.

A partir de estudos produzidos pelo Movimento Estratégico pelo Estado Laico (MEEL), Cunha escreveu uma carta de princípios estratégicos para fortalecer a luta pelo Estado laico. O texto foi distribuído entre os presentes na reunião, que se comprometeram em apresentar contrapropostas através da lista de e-mails para, a partir daí, poderem fechar um documento coeso.

Costurando um direcionamento

Este encontro foi marcado por uma diversidade de identidades, crenças, áreas de saber, perspectivas, demandas e um desejo compartilhado de se discutir estratégias em prol da pluridade religiosa. Foram lançadas muitas perguntas a fim de se construir conceitos que unifique esta heterogeneidade em uma luta coesa e estruturada. Surgiram algumas diretrizes de mobilização, como o acompanhamento das eleições do Executivo de 2014 e solicitar aos teólogos que escrevam sobre o Estado laico.

O encaminhamento mais concreto foi a esquematização de um segundo seminário para se discutir a laicidade do Estado, a ser realizado no início de 2014 no auditório da Câmara dos Deputados, em Brasília. O primeiro seminário foi realizado em setembro deste ano. Foi montada uma comissão organizadora para ficar à frente este evento.

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