A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA) com a função de promover a observância e a defesa dos Direitos Humanos, está no Brasil desde o dia 5 de novembro, até o dia 12. As visitas in loco são um dos mecanismos com os quais a CIDH conta para analisar a situação dos direitos humanos nos países. A partir da visita, será feito um relatório com a análise do contexto e recomendações ao Estado brasileiro.
A observação de campo sobre a situação dos direitos humanos no país abordou os seguintes eixos transversais: discriminação, desigualdade, pobreza, institucionalidade democrática e políticas públicas em direitos humanos. Em particular, a Comissão teve atenção à situação das pessoas afrodescendentes e quilombolas; comunidades e povos indígenas; camponeses, camponesas e trabalhadores rurais; população urbana em situação de pobreza; defensoras e defensores de direitos humanos; pessoas privadas da liberdade; migrantes; entre outros.
Audiência sobre Memória, Verdade, Justiça e Reparação
A última visita da CIDH ao Brasil aconteceu em 1995, 7 anos após o fim da ditadura militar, período este marcado tanto pela perseguição brutal aos opositores políticos quanto pela implementação de uma agenda econômica que aprofundou as desigualdades sociais no país. Desde então, os avanços nas políticas brasileiras acerca da Memória, Verdade, Justiça e Reparação pelos crimes de Estado cometidos ainda são limitados.
Algumas medidas reparatórias foram implementadas – como a Lei n.º 9.140, de 1995, que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMPD); a Lei n.º 10.559, de 2002, que criou da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (CA/MJ), voltada para garantir a reparação a indivíduos perseguidos pelo regime militar; a inserção do eixo “Direito à Memória e à Verdade” no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), em 2010, e a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2012. Ainda assim, o Brasil continua com lacunas significativas no que diz respeito à sua impunidade histórica por essas violações e por outras que nunca foram tratadas por políticas de reparação adequadas. Tampouco avançou sobre reformas institucionais necessárias ou depuração dos quadros autoritários no serviço público.
Nesse contexto de tantas continuidades da violência estatal e de falta de resolução e reparação de diversos casos da época da ditadura, a CIDH promoveu uma audiência pública com o tema Memória, Verdade, Justiça e Reparação, no dia 8 de novembro, na cidade do Rio de Janeiro, liderada pela comissária chilena Antonia Urrejola. Nessa audiência, estiveram presentes diversas organizações, coletivos e familiares de vítimas de violência de Estado do passado e da atualidade, apresentando à Comissão o cenário atual referente à temática.
Por meio da coordenadora do projeto “Políticas de Reparação à Violência de Estado Ontem e Hoje”, Shana Santos, o ISER reforçou o pedido de que o governo brasileiro assegure, ao menos, o funcionamento dos poucos mecanismos de reparação criados em relação às violações de direitos humanos cometidas pela ditadura, especialmente a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia.
Em sua fala sobre os retrocessos percebidos no âmbito de MVJ, Shana pontuou: “o crescimento, no espaço público, de discursos de legitimação às violências do regime ditatorial, o que pode, a partir do ano que vem, se expressar em políticas como: a homenagem oficial aos perpetradores, a supressão das reparações concedidas, a criação de obstáculos ao acesso a acervos do período ou sobre o período que estejam sob custódia dos órgãos públicos, a proibição de materiais didáticos e paradidáticos com perspectivas críticas à ditadura, dentre outras ações”.
Em conjunto com outros movimentos sociais do campo da Memória, Verdade e Justiça no Rio de Janeiro, o ISER elaborou dez recomendações que foram apresentadas à CIDH pela ativista Ana Miranda. Leia o conjunto completo de recomendações AQUI.
Mulheres negras, familiares de vítimas de violência urbana e população LGBTI
Outra audiência pública organizada pela CIDH, no dia 9 de novembro, abordou as temáticas de violência contra mulheres negras, familiares de vítimas de violência letal urbana e as violências contra a população LGBTI. Os três temas foram discutidos de forma conjunta, tendo como eixo central as diversas manifestações de violência orientadas pelo racismo. A pesquisadora do ISER Rafaela Albergaria leu uma carta do Fórum Estadual de Mulheres Negras, apontando aspectos do racismo institucional e estrutural no Brasil para se pensar políticas de reparação: “Quando apontamos para esses aspectos e falamos em políticas de reparação, não apontamos para um passado. Mas falamos de uma violência do passado e do presente que nos conforma enquanto nação e estrutura as políticas públicas em um viés de política de morte – necropolítica”.
Nesse sentido, a pesquisadora apontou à Comissão a necessidade de trazer em seu relatório o aspecto do genocídio da população negra, a sistematicidade dessa violência que sempre permaneceu nas estruturas de relações sociais do Brasil: “As formas que nos matam são diversas: é por meio da violência policial letal, do não acesso à saúde, das prisões”, afirmou Rafaela.