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Maternidade e Cárcere: faces da violência de Estado 

Autores: Erivelto Melchiades, Kessia Gomes, Lucas Matos e Nina Barrouin.

Em alusão ao mês de maio, considerado o “mês das mães”, convidamos a leitora e o leitor para uma reflexão sobre algumas dimensões da violenta relação entre os processos de criminalização, sistema prisional e interdições do direito ao exercício pleno da maternidade no Brasil. 

  O último relatório INFOPEN Mulheres, lançado em 2018, revela que em junho de 2016 o Brasil possuía uma população prisional feminina de 42.355 mulheres, nos colocando como o  quarto país que mais encarcera mulheres no mundo. Ainda podemos observar que 50% da população prisional feminina é jovem, 62% são negras e apenas 15% concluíram o ensino médio. Os dados do INFOPEN (2018)  ainda demonstram que a maioria das mulheres em estabelecimentos prisionais responde por crimes praticados sem violência, sendo o tráfico de drogas o mais recorrente, responsável pela prisão de 62% dessas mulheres. 

O relatório do INFOPEN revela, ainda, que 74% das mulheres presas no Brasil são mães. Esse dado foi reforçado por uma pesquisa divulgada no ano de 2020 pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), organização com larga experiência na discussão sobre maternidade no cárcere, que demonstra que a questão da maternidade está presente na vida da maioria das mulheres criminalizadas com pena de prisão no Brasil.

Sobre isto, é importante ressaltarmos que pensar a realidade das mulheres e mães encarceradas no país, é colocar em questão a estrutura social racista e desigual que mobiliza esses processos de criminalização: as mulheres presas são pretas, faveladas, periféricas e mães. São a estas mulheres que vem sendo negado o direito de maternar dentro e fora dos presídios, pois mesmo aquelas que estão em prisão domiciliar ainda  encontram graves desafios nos cuidados junto aos seus filhos. 

 A maternidade no cárcere é caracterizada por inúmeros desafios e violências contra mães e crianças, desde a gestação, parto, amamentação, e também para aquelas que são separadas dos filhos pelo aprisionamento. Um exemplo importante para ilustrar o quadro  é que somente em 13 de abril de 2017 houve uma alteração do Código de Processo Penal, no sentido de proibir o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto, durante o trabalho de parto e no puerpério imediato. Essa proibição é muito recente e a sua efetividade precisa ser garantida, em um contexto caracterizado pela violência obstétrica e desumanização da mulher encarcerada, processos sustentados no racismo e no sexismo.  

Mas os atravessamentos violentos entre o encarceramento, a política de drogas e a maternidade extrapolam o contexto das mulheres mães privadas de liberdade. No texto que abre o livro Covid nas Prisões: Pandemia e Luta por Justiça no Brasil (2020-2021), Christiane Pinagé, após descrever a “angústia, tristeza e preocupação” ( p. 19) de quem tem um filho encarcerado, sentimentos agudizados no contexto da pandemia e de proibição de visitas, pergunta: “Feliz dia das Mães?” 

Na mesma publicação, Eliene Vieira e Fátima Pinho (2021), no texto A Luta das Mães contra o Genocídio da Juventude Negra Dentro e Fora do Cárcere, expõem como a atuação do “Estado racista e excludente” (p. 20), sustentada na lógica do genocídio e do encarceramento massivo e justificada ideologicamente pela “guerra às drogas”, produz terror nas mães das periferias das cidades brasileiras:

Já passou da hora de se entender que nas favelas não existem fábricas de armas nem fábricas de drogas, já passou da hora de se entender que os grandes cartéis não estão nas favelas e periferias e que tudo isso é um projeto genocida de quem deveria zelar pelo povo e pelo direito: o Estado (p. 22) 

Como colocado pelas autoras, a resposta dos movimentos sociais de mães e familiares que resistem contra as várias faces da violência de Estado é a luta “pelos direitos da favela, direito à vida, direito à memória, justiça, verdade e liberdade, direitos esses que são violados o tempo todo com o discurso da guerra às drogas” (p. 22).   

O Estado que deveria ser o garantidor de direitos, não cumpre com seu dever constitucional, se omitindo e violando direitos dos moradores, principalmente em questões relacionadas à política de guerras às drogas e encarceramento (MELCHIADES, 2021). 

A promulgação da Constituição Federal em 1988 não impediu que a violação de garantias fundamentais e direitos sociais fosse uma marca da democracia formal no Brasil. Casas são invadidas sem o respectivo mandado judicial, caminhando em direção contrária ao que diz o artigo 5º, inciso XI da Constituição Federal, sobre a inviolabilidade do domicílio e sobre a honra e intimidade da pessoa. O princípio da isonomia, descrito no próprio 5° da CF/1988, garante a “igualdade entre todos os cidadãos, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do Direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade”, porém a indagação feita é: porque tal direito não se aplica na Favela? E porque o suposto combate ao tráfico de drogas está acima do direito à vida, à propriedade e à intimidade?

A presença das forças de segurança provoca pânico, medo, ansiedade e incertezas na vida das mães das periferias do Brasil, O comércio, a escola, o posto de saúde param suas atividades e os moradores não podem exercer o seu direito de “ir e vir”, ficando reclusos em suas casas e fazendo suas preces para que não sejam mais uma vítima de “bala perdida” ou tenham sua propriedade violada.

O Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro( FPOPSEG), espaço de articulação política de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, entre elas o ISER, apresentou em 2022 o seu manifesto popular contra a violência do Estado e pelo bem viver, apontando como o discursso de guerra as drogas atrelado a atual política de segurança pública produz mortes e violências nos territórios negros e favelados do Rio de Janeiro. 

É nessa dimensão das lutas pela liberdade e pela efetivação de direitos centrais para a efetiva democratização do país, que segue sendo fundamental resistir às ilusões do controle punitivo estatal como solução para os dilemas sociais do país, As condições do Sistema prisional feminino são precárias e institucionalizar a maternidade não é a solução. Após mais de um século do processo de escravização no país, o retrato das mães no cárcere do Brasil é o retrato da mulher preta, favelada e periférica. Este também é o retrato das mães que perderam seus filhos para violência policial, é o retrato das mães que têm seus filhos e filhas encarceradas. São estas mulheres, mães, irmãs, esposas, filhas, que dentro e fora do cárcere, afinal, que se levantam pelos seus, transformando o luta em luta (OLIVEIRA, 2021). Grande parte da sociedade que nos últimos anos clamou em favor da família é a mesma parte que endossa o ódio às famílias de mulheres e mães encarceradas.  Feliz dia das mães? Christiane Pinagé, mãe de sobrevivente do cárcere, se perguntou isto em maio de 2020. Em 2023, seguimos questionando:‘’Que mulheres têm o direito de comemorar este dia?”. 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei nº 13.434, de 12 de abril de 2017. Presidência da República.  Acrescenta parágrafo único ao art 292 do Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para vedar uso de algemas em mulheres grávidas durante o parto e em mulheres durante a fase de puerpério imediato. Disponível em <L13434 (planalto.gov.br)>. Acesso em 10 mai. 2023.

Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Maternidade Sem Prisão: diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. – São Paulo: ITTC, 2019. Disponível em <maternidadesemprisao-aplicacao-marco-legal.pdf (ittc.org.br)>. Acesso em 10 mai. 2023.

______. Maternidade no cárcere: olhando para mulheres migrantes em conflito com a lei. Blog ITTC. São Paulo. 08 mai 2020. Disponível em: <Maternidade no cárcere: olhando para mulheres migrantes em conflito com a lei – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC>. Acesso em 10 mai. 2023.

Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES. 2ª. Edição. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública/Departamento Penitenciário Nacional, 2018. Disponível em <INFOPEN MULHERES 2018.pdf (usp.br)>. Acesso em 10 mai. 2023.

Manifesto popular contra a violência do Estado e pelo Bem Viver. Fórum Popular de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 28 jun 2022. Disponível em: <https://fpopseg.org/2022/06/28/hello-world/>. Acesso em 10 mai. 2023. 

MELCHIADES, ERIVELTO. A atual política de drogas e encarceramento em tempos de pandemia nas favelas do Rio de Janeiro. In: BARROUIN, NINA et al (ORG). Covid nas Prisões: pandemia e luta por justiça no Brasil (2020 – 2021). – Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião – ISER, 2021. p. 19.

OLIVEIRA, PATRÍCIA. Familiares de vítimas de violência de Estado em luta. In: BARROUIN, NINA et al (ORG). Covid nas Prisões: pandemia e luta por justiça no Brasil (2020 – 2021). – Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião – ISER, 2021. p. 19.

PINAGÉ, CHRISTINE. Feliz Dia das Mães?. In: BARROUIN, NINA et al (ORG). Covid nas Prisões: pandemia e luta por justiça no Brasil (2020 – 2021). – Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião – ISER, 2021. p. 19.

VIEIRA, ELIENE ; PINHO FÁTIMA. A luta das mães contra o genocídio da juventude negra dentro e fora do cárcere. In: BARROUIN, NINA et al (ORG). Covid nas Prisões: pandemia e luta por justiça no Brasil (2020 – 2021). – Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião – ISER, 2021. p. 20-23.