A partir da compreensão, construída por pesquisas de opinião recentes, de que as mulheres evangélicas teriam papel crucial nas eleições nacionais de 2022, o Instituto de Estudos da Religião (ISER) realizou, durante os meses de maio a julho de 2022, a pesquisa “Mulheres evangélicas, política e cotidiano”.
A investigação teve como objetivo produzir dados qualitativos que trouxessem novas perspectivas sobre mulheres evangélicas. É importante destacar que são as mulheres negras e pobres que compõem quase 60% deste segmento religioso. Portanto, mais do que compreender exclusivamente sua percepção sobre as eleições e voto, a pesquisa explorou percepções sobre política e cidadania articuladas à vida cotidiana.
Pesquisa “Mulheres Evangélicas, política e cotidiano” é assunto de Debates do NER
Artigos sobre a pesquisa e comentários de pesquisadores da área foram publicados em Debates do NER, um periódico semestral, criado em 1997 por iniciativa do Núcleo de Estudos da Religião (NER), do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Confira abaixo os resumos dos artigos e leia a pesquisa completa.
Artigo: Mulheres evangélicas para além do voto: concepções sobre política e cotidiano (Lívia Reis e Jacqueline Teixeira)
“Neste artigo, apresentamos uma análise dos resultados de uma pesquisa qualitativa realizada com mulheres evangélicas de diferentes denominações, idades e regiões do Brasil entre abril e setembro de 2022. Diante da centralidade assumida pelos “evangélicos” durante os anos do governo de Jair Bolsonaro e da iminência das eleições de 2022, a pesquisa buscou desvelar elementos que ajudassem a compreender os processos de engajamento políticos e cotidianos daquelas que compõem a maioria deste segmento religioso. Com base no conceito de margem (Das, 2011) e na reflexão sobre a articulação entre gênero, religião e outros marcadores sociais da diferença, abordaremos o modo como o conceito de gênero performatizado pela categoria mulher permite produzir determinados regimes de iterabilidade para narrativas políticas e também para um entendimento específico dos sentidos da política. Ao mesmo tempo, para além da vivência na igreja, as experiências cotidianas se apresentaram como um balizador importante na definição de posicionamentos e visões de mundo dessas mulheres. Argumentamos, ao final, que escrutinar a forma como esse cenário tem sido vivido, percebido e apreendido pelas mulheres evangélicas nos ajudou a pensar a religião como um elemento organizador da vida social e um marcador social da diferença que não deve ser desconsiderado.”
Comentário: As marcas das mídias sociais no voto das mulheres evangélicas (Magali Cunha)
“Os dados qualitativos da pesquisa com as mulheres evangélicas, realizada antes do primeiro turno das eleições, não incluíram o conteúdo em circulação nos grupos de família no WhatsApp, mas contêm o registro de que a maioria das ouvidas nas tríades recorre a eles como informação. A propaganda eleitoral não foi citada como meio de informação, apenas debates eleitorais transmitidos pela TV aberta, mesmo assim, como fonte para mulheres mais velhas.
Entretanto, Jacqueline Teixeira e Livia Reis (2022) registram que tiveram acesso a um monitoramento qualitativo de grupos de oração e de igrejas no WhastApp que reúnem majoritariamente mulheres, na região sudeste, durante o segundo turno das eleições de 2022, que indica outro quadro. Estes grupos atuaram na propagação de mensagens desinformativas, favoráveis ao candidato Jair Bolsonaro como “redentor da nação”, enquanto ao opositor Lula se atribuía o caráter demoníaco.
É possível inferir que, dada a alta interação com mídias sociais da parte de fiéis evangélicos, não só no WhatsApp, mas também no Facebook, no Instagram, no Youtube e no TikTok, para mencionar as mais populares, as 45 mulheres participantes das tríades tiveram acesso a este tipo de mensagem.”
Comentário: “Notas sobre evangélicos, política e gênero a partir das Eleições de 2022” (Nina Rosas)
“Trago neste texto apontamentos sobre religião e política, a partir de duas estratégias. Tomo como referência, de um lado, o artigo Mulheres evangélicas para além do voto: notas sobre processos de engajamento, política e cotidiano, de Jacqueline Teixeira e Lívia Reis. De outro, cotejo-o com uma breve reflexão sobre a Teologia do Domínio e a aproximação de parte dos evangélicos com o bolsonarismo, exemplificada por Ana Paula e André Valadão. Proponho, fazendo eco às autoras, que as chaves de leitura atuais se centrem em sistemático escrutínio e revisão de categorias, como família e guerra espiritual, e em tomarmos como imprescindível análises a partir da variável gênero, que está indissociavelmente ligada a raça e classe.”
Comentário: “Sobre jovens mulheres evangélicas: retratos em movimento” (Regina Novaes)
“Passada a “moratória confessional” que teve lugar nas últimas eleições, já temos notícias de rearranjos e conflitos de diferentes ordens. O processo de disputas de valores no campo político e no campo religioso continua em curso. Nesses espaços as relações delicadas entre “família” e “família de fé” permanecem e se modificam.
Por fim, resta afirmar que – por sua plasticidade – a categoria “família” pode ser pensada como um símbolo que nunca se esgota em seus significados. Um símbolo que permanece vivo justamente porque comporta dúvidas socialmente partilháveis. Nessa perspectiva, por um lado, compreende-se que a apropriação da família como símbolo da Campanha Mulheres com Bolsonaro, realizada por Michelle e Damares, tenha sido naquela conjuntura bem sucedida eleitoralmente. Mas, por outro lado, isso não significa que – em outras situações – as mesmas palavras, imagens e comparações bíblicas funcionarão na mesma direção e sentido.
Já no que diz respeito particularmente às mulheres evangélicas, podemos dizer que – mesmo vivendo em um tempo em que proliferam denúncias sobre machismo e afirmação de direitos das mulheres – jovens mulheres evangélicas não estão imunizadas contra a onda conservadora presente nas igrejas e na sociedade. No entanto, socializadas em um mundo digital, vivendo em famílias plurirreligiosas e convivendo com diferentes modelos de família, jovens mulheres evangélicas mostram-se permeáveis a outras interpretações da política, da igreja e da Bíblia. Sendo assim, e sem menor pretensão de fazer profetismo antropológico, arrisco afirmar que a personagem bíblica da Rainha Ester não ficou aprisionada na interpretação de 2022. Afinal, inseridos em tantas questões humanas, a simbologia bíblica é produtora de múltiplos significados.”
Comentário: “Salvando do religioso: sobre purificar as mulheres evangélicas” (Cleonardo Mauricio Junior)
“As palavras “para além do voto”, antes mesmo de “mulheres evangélicas” (sujeitos da pesquisa em questão), foram as mais céleres em captar minha atenção no título do artigo de Jacqueline Teixeira e Livia Reis (“Mulheres evangélicas para além do voto: notas sobre processos de engajamento, política e cotidiano”), que agora passo a comentar. Brilhando como um letreiro em neon, esses termos remeteram-me de imediato ao texto de Regina Novaes (2017) a respeito de serem os evangélicos mais do que ovelhas, como também ao de Roberta Campos (2005), sobre o carisma entre os pentecostais significar mais do que puramente dominação. Aparentemente, então, continua sendo necessário lembrar aos cientistas sociais brasileiros da complexidade dos evangélicos em geral, e do pentecostalismo em específico, mostrando-os além do lugar comum a que temos acesso através da mídia tradicional ou das polêmicas nas redes sociais: eles são mais do que a bancada evangélica; mais do que as performances de sua liderança institucional (sem delas prescindir); mais do que indivíduos ludibriados por manipuladores de má (ou da má) fé; mais do que exclusivamente conservadores (há também os evangélicos progressistas); e enfim, no artigo aqui sob foco, mais do que eleitores, ou melhor, mais do que eleitoras predispostas a aceitarem os desígnios da extrema direita.”
Resposta aos comentários: “Juventudes, Mídias, Fmaília e modos de subjetivação: diálogos possíveis sobre mulheres evangélicas, política e cotidiano” (Lívia Reis e Jacqueline Teixeira)
“Pode parecer mera formalidade, mas não é. A possibilidade de receber e poder responder comentários de tamanha qualidade ao artigo “Mulheres evangélicas para além do voto: notas sobre processos de engajamento, política e cotidiano” (Teixeira; Reis, 2022), escrito por nós, é um privilégio que poucas vezes é possível experimentar na dinâmica acelerada da vida acadêmica. Por isso, registramos nossos inestimáveis agradecimentos a Regina Novaes, Magali Cunha, Nina Rosas e Cleonardo Maurício Junior, não apenas pela forma cuidadosa como leram o texto, mas também por aceitarem o desafio que lhes foi imposto em tão pouco tempo. Estendemos nossos agradecimentos, em especial ao ISER (Instituto de Estudos da Religião), que financiou a pesquisa que embasou o artigo e à equipe da Revista Debates do NER, que possibilita a existência desse espaço de troca tão importante para as Ciências Sociais da Religião.”