O Instituto de Estudos da Religião manifesta, por meio desta nota, o seu repúdio e lamento pelas violências sofridas por Cláudia Silva Ferreira, moradora do Morro da Congonha, em Madureira, no domingo, dia 16 de fevereiro de 2014. Depois de ferida por um tiro decorrente de um confronto armado do qual participavam policiais do 9º Batalhão de Polícia Militar (Rocha Miranda), Cláudia foi posta no porta-malas da viatura policial, cuja porta abriu fazendo com que ela fosse arrastada pela viatura por diversos metros. Os policiais alegaram que estavam prestando socorro à Claudia ao conduzi-la ao hospital. As imagens que ocuparam os noticiários e as redes sociais nos últimos dias contrariam esta versão. Independente da abertura do porta-malas, é questionável usar este tipo de procedimento para socorrer uma pessoa. Não se socorre alguém o atirando de modo abrupto no porta-malas de um carro. A abertura da porta foi a manifestação mais contundente do tratamento desumano que Cláudia recebeu desde o início do incidente. Foi a trágica metonímia do desrespeito e das violações sofridos historicamente pela população negra e moradora de favelas do Rio de Janeiro.
A morte de Claudia, sua dor e a dor de seus parentes e amigos são irredutíveis, irreparáveis. É preciso, entretanto, que o estado do Rio de Janeiro se empenhe em aplicar todos os dispositivos e ações que possam trazer algum conforto e amparo à família. Qualquer esforço nessa direção será diminuto em vista do dano causado pelo Estado à Claudia e seus familiares. Do ponto de vista das consequências públicas das violações sofridas por Cláudia, é necessário que o Governo do Estado do Rio de Janeiro assuma diretrizes políticas que impeçam que casos como estes se repitam diariamente nas favelas.
Cláudia, antes de seu suplício na viatura da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), foi ferida por uma bala decorrente de um confronto provocado por uma intervenção policial no Morro da Congonha, que seguia o mesmo figurino das incursões policiais em favelas que há décadas se repetem no Rio de Janeiro. É importante pontuar, no entanto, que a gestão pública de segurança alega que esse padrão de policiamento se opõe aos horizontes propostos pelas Unidades de Polícia Pacificadora. O caso de Cláudia ocorre em meio a uma conjuntura na qual diversos ataques armados vêm sendo perpetrados contra agentes das UPPs. A reação do governo do Rio de Janeiro, no lugar de ser o aprofundamento e afirmação das diretrizes das UPPs, tem sido a adesão ao desastroso modelo tradicional repressivo e pautado nas incursões e operações especiais.
As UPPs, do ponto de vista das diretrizes que as orientam e dos ajustes institucionais que demandam, são uma importante oportunidade de se promover uma reforma profunda na PMERJ. Ao propor o policiamento de proximidade como alternativa às incursões e operações especiais em favelas, elas demandam um repertório operacional e uma cultura institucional que poderiam aproximar a PMERJ de padrões mais próximos às prerrogativas de uma instituição republicana e democrática. O debate sobre a reforma da Polícia Militar, e mesmo sobre sua desmilitarização, ganhou fôlego e ressonância em função da discussão pública sobre as UPPs. Os parâmetros exigidos pelas UPPs, entretanto, ainda não são moeda corrente na cultura institucional da PMERJ e estarão tão mais distantes de ser incorporados por seus operadores quanto mais se admitir a reprodução do modelo da brutalidade e da desumanização, tão entranhado na corporação. A PMERJ não pode falar essas duas linguagens políticas, a da incorporação da postura cidadã e promotora de direitos e a da brutalidade policial, sem que a segunda prevaleça sobre a primeira. Isto porque a brutalidade policial não é incidental ou desviante na PMERJ: está ancorada numa cultura institucional repressiva, sustentada pelas linhas de comando (nos batalhões, sobretudo) e disseminada nas praças. Cabe ao Governo do Estado do Rio de Janeiro estabelecer um compromisso não somente com a estabilidade das UPPs, do ponto de vista da conquista territorial, mas também com as reformas institucionais necessárias para que as instituições policiais do Rio de Janeiro deixem de ter a violência policial como parte de seu modus operandi. O padrão repressivo e reativo, ainda predominante, não pode ser mobilizado e legitimado para atender aos propósitos da conjuntura. A estabilidade das UPPs não pode ser perseguida a qualquer preço, ao custo de muitas Cláudias e muitos jovens negros e moradores de favelas (perfil preferencial das vítimas das violências cometidas por policiais).
Para além do fato notório de que as políticas sociais não acompanharam as UPPs de modo eficaz como alternativa à permanência policial pura e simples nas favelas, é importante ressaltar que nem mesmo o policiamento prometido por essas unidades foi plenamente entregue à população. O terreno ganho na ocupação territorial não foi acompanhado de avanços necessários à reforma institucional da PMERJ. A adesão e o aval ao padrão tradicional, inclusive com o Bope sendo mobilizado para treinar policiais das UPPs, são sintomas desse cenário.
O tiro que matou Cláudia também é decorrência do fato de que a atuação das instituições policiais fluminenses não está ancorada por uma política de segurança pública mais ampla, que tenha a prevenção da violência e o exercício da cidadania como foco. As UPPs roubaram a cena do debate sobre segurança pública no Rio de Janeiro e pouco se avançou na consolidação de ações de prevenção à violência e promoção de direitos nos últimos anos. A política de redução de homicídios não pode estar calcada apenas nas intervenções e nos impactos de curto prazo promovidos pelas UPPs.
Aderir à postura reativa e repressiva tradicional só pode significar um retrocesso que, a médio e longo prazos, contribuirá para que casos como o de Claudia se repitam. É importante que o momento de crise sirva para aprofundar os horizontes que nos aproximam das práticas democráticas, e não os que nos afastam delas. Neste sentido, o ISER defende a construção de um plano estadual de segurança pública que integre programas multissetoriais e seja debatido de modo democrático e participativo.