Por Gabrielle Oliveira de Abreu
Historiadora e pesquisadora do ISER
Ao longo do último mês, testemunhamos a intensa busca por Lázaro Barbosa, homem de 32 anos que no intervalo entre 2007 e 2021 cometeu uma série de crimes, tendo intensificado e barbarizado suas práticas enquanto tentava escapar do cerco montado por forças de segurança pública na região de Goiás. Muitos foram os veículos de imprensa que propagaram a informação falsa de que o criminoso estaria agindo com base em preceitos afro-religiosos e que integrantes dos terreiros estariam o acobertando. Essas “explicações” advieram de alguns dos policiais envolvidos na busca por Lázaro, que realizaram diligências violentas nesses espaços religiosos. Inquirindo duramente os membros e danificando artefatos dos terreiros, os policiais disseram ter constatado a associação. Rapidamente, uma grande e necessária mobilização de lideranças afro-religiosas do centro-oeste tratou de desmentir o boato.
Este é um exemplo recente de como a prática das religiosidades de matriz africana é constantemente vinculada a elementos negativos, ainda que Lázaro sequer pertencesse, de fato, à umbanda ou ao candomblé. Entretanto, a falta de compreensão plena das religiosidades afro-brasileiras é bem mais antiga e remonta, especialmente, à primeira metade do século XX. Neste contexto, a prática religiosa afro-brasileira foi severamente cerceada e criminalizada pelo Código Penal vigente à época. O fruto de tamanha repressão foi o confisco de mais de 500 peças relacionadas aos cultos afro-religiosos pela polícia do Rio de Janeiro no período. Esses itens estavam sob a custódia do Museu da Polícia Civil, desde então, e não passaram por nenhum tipo de tratamento arquivístico ou foram expostos ao público carioca na condição de um valioso acervo histórico-religioso.
A apreensão quase centenária dessas peças culminou no movimento “Liberte Nosso Sagrado”: uma reunião de religiosos, pesquisadores, ativistas do movimento negro e organizações da sociedade civil que, desde 2017, pressionam para que os objetos sejam encaminhados para um centro de memória apropriado e, enfim, possam ser tratados e devidamente difundidos enquanto retratos importantes da intolerância do passado, que ainda é enfrentada no presente. Encabeçada pela iyalorixá Meninazinha d’Oxum, a luta do movimento inspirou a idealização do documentário Nosso Sagrado (2017) pela Quiprocó Filmes, produtora que se tornou mais uma aliada na reivindicação da campanha.
A peleja em torno do remanejamento das peças terminou, enfim, no dia 19 de junho de 2021, quando foi assinado o termo de concessão dos itens para o Museu da República. Junto ao movimento Liberte Nosso Sagrado e ao povo de terreiro, o ISER celebra mais um passo rumo à superação do racismo religioso e à conquista de uma autêntica liberdade de credo em território brasileiro.
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