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Para além da pacificação no Rio

Um compreensível sentimento de medo atinge os moradores do Rio de Janeiro pelos rumos que vêm tomando as antes amplamente reconhecidas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Parte das elites cariocas teme que o programa esteja se enfraquecendo e que a violência em favelas e periferias esteja ficando fora de controle. O governador recorreu ao reforço das Forças Armadas, que enviarão mais de 4 mil soldados à cidade. As manchetes dos jornais tornam-se cada dia mais alarmistas, antevendo o fracasso do principal programa da atual administração do Estado. O temor que domina 2014 contrasta fortemente com o otimismo exacerbado do período entre 2009 e 2013.

Embora os dados demonstrem que a violência aumentou em distintas regiões da cidade, há também sinais de que parcelas da população estejam reagindo de forma desproporcional ao problema. Nesse processo, corre-se o risco de as autoridades públicas abandonarem a estratégia bem-sucedida de policiamento de proximidade e substituí-la pela abordagem militarizada do passado.

Uma triste e familiar narrativa do medo volta a se instalar no discurso público, traduzida em falas enfáticas sobre combater com agressividade as facções ligadas ao tráfico de drogas e eliminar os “interesses” que visam enfraquecer as UPPs. Um debate mais crítico sobre maneiras de se aprimorar a segurança pública e política social esta sendo enterrada pela retórica do medo. Enquanto ISSO, parte da mídia contribui para estigmatizar os moradores de comunidades como arautos do vício e do crime, ao mesmo tempo em que alimentam o apetite pela guerra.

Mesmo com imperfeições, as UPPs produziram resultados impactantes desde seu lançamento em dezembro de 2008. Hoje o programa possui 38 bases e cobre uma área de 178 comunidades, abrangendo aproximadamente 1,5 milhão de pessoas. As UPPs provocaram uma redução de mais de 65% nos níveis gerais de violência letal nas áreas pacificadas. As taxas de homicídio encontram-se hoje em 9,2 para cada 1oo mil habitantes, contrastando com os 18,8 do restante da cidade. Há igualmente menos mortes de civis por balas perdidas, uma menor presença de armamentos e uma maior sensação de confiança nas comunidades.

Alunos do sistema público de ensino residentes em áreas de UPP tiveram uma performance na escola duas vezes melhor do que a média geral do Rio. Contudo, isso não quer dizer que os desafios não se façam presentes. Um exemplo claro disto é o aumento dos furtos e roubos em algumas regiões da cidade. Outro é a preocupação com a elevação exponencial do custo de vida provocada pela Valorização dos territórios pacificados, o que traz um fardo financeiro muito grande para os moradores mais vulneráveis. E, claro, as mortes de policiais e civis ocorridas nas últimas semanas.

Agora, mais do que nunca, é preciso aprimorar, aprofundar e consolidar o projeto das UPPs. Ele ainda carece de uma doutrina clara e de maior institucionalidade no seio das instituições do Estado e da polícia. O treinamento de policiais de UPPs sendo oferecido pelo BOPE produz um perigo real de reversão para práticas de policia mento do passado, em vez de se buscar abordagens mais progressistas e dialógicas. É fato que mais segurança não será obtida apenas por via de mais policiamento. Pelo contrário, é preciso um compromisso que envolva todo o setor público e toda a sociedade.

Faz-se também urgente a entrega de dividendos sociais e econômicos da pacificação. Não se trata apenas de assegurar o acesso a serviços básicos pelas comunidades historicamente esquecidas pelo poder público. Significa igualmente assegurar que a educação, saúde e serviços de qualidade do conjunto da cidade, nem mais, nem menos.

Além disso, para que a pacificação ganhe o desejado significado de paz, é preciso uma política para juventude, de oportunidades de renda, trabalho, estudos e lazer. O projeto de pacificação fracassará se não for acompanhado de investimentos robustos em melhorias nas condições básicas de vida dos residentes das comunidades.

Por fim, o sucesso das UPPs repousa no questionamento pelos próprios cariocas sobre o tipo de sociedade que eles desejam construir. Durante períodos de crise é tentador se recorrer a narrativas simplistas de um “nós” contra “eles” ou a se esconder atrás dos muros altos dos condomínios e de uma polícia bruta e violenta. No entanto, caso se deseje quebrar o ciclo de violência, é justamente o oposto que se faz necessário no Rio de Janeiro. O diálogo deve ser a prioridade número um, como apontam os moradores do Complexo do Alemão em recente manifesto divulgado na internet: “Queremos ser felizes e andar tranquilamente na favela”. Uma conversa franca entre os líderes comunitários da cidade, especialmente em áreas pacificadas, foi prometida para os próximos dias. Essa interação deveria contar com a participação não só da polícia, mas também de políticos, empresários, pesquisadores e ativistas. É por esse caminho que o Rio de Janeiro poderá construir coletivamente um pacto comum pela eletricidade, água e saneamento atendam ao padrão de segurança de todos na cidade.

página estadão

*Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé. Pedro Strozenberg é secretário executivo do Iser. Ilona Szabó de Carvalho é diretora do Instituto Igarapé.