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Religião no socioeducativo

Pedro Simões

é doutor em sociologia; professor da ESS/UFRJ e pesquisador associado ao ISER.

É sintomático que a assistência religiosa no sistema socioeducativo não seja objeto de estudo dos sociólogos da religião, dos estudiosos do direito das crianças e adolescentes ou de quem se dedica às pesquisas sobre assistência social. Entretanto, este tipo de assistência é considerado como um Direito Humano fundamental, pois tem como base a liberdade de jovens que se encontram nas Unidades de privação de liberdade. As declarações internacionais, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça Juvenil – Regras de Beijing, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, assim como, a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente e mais recentemente o Sinase (2006) normatizam sobre o assunto.

Em síntese, o ordenamento legal prevê que a assistência religiosa é um direito daqueles que estão em instituições de regime fechado, ou privação de liberdade, como prisões, hospitais e quartéis; que a assistência ocorra segundo a vontade do indivíduo e de acordo com suas crenças. O pressuposto é que, na impossibilidade de buscar a instituição religiosa de sua referência, derivada da privação – temporária – de liberdade, que um representante de sua religião o assista, sempre que o interno julgue necessário. A este direito fundamental as instituições do Estado não podem se contrapor, apenas, normatizar condições de execução de modo que a segurança e as demais atividades não sejam afetadas.

Esta ausência de preocupações e de constituição de massa crítica sobre o tema da assistência religiosa tem deixado na invisibilidade um conjunto amplo de violações. A principal pode ser resumida na visão tutelar que se mantém do jovem que está internado. A partir desta visão, o adolescente é visto como incapaz de deliberar sobre sua própria vida e a prova mais cabal disso é a sua presença no sistema socioeducativo.

No que tange à religião, ela é tida, pelos agentes institucionais– gestores dos sistemas e diretores das unidades (segundo informações coletadas em entrevistas) – como um elemento fundamental para a socioeducação e sem o qual, dificilmente, o jovem conseguirá transformar a sua vida de “erros e delitos”. Desta forma, a preocupação dos gestores é a garantia que grupos religiosos atuem no sistema (em geral, a Igreja Católica e mais uma ou duas igrejas evangélicas, como a Assembléia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus) de forma regular, com trabalhos sistemáticos, que entretenham os jovens, que ajudem a pacificar as Unidades e que, principalmente, tenham um cunho mais educativo e correcional que religioso/ritualístico.

Esta forma de condução e institucionalização do trabalho casa-se com os propósitos dos assistentes religiosos que buscam as Unidades de Socioeducação. Estes agentes voluntários são movidos pela fé e imbuídos de um mandato institucional (de suas igrejas). Eles buscam as Unidades para dar a “palavra” aos jovens e realizar a “pregação religiosa”. Desta forma, estes assistentes têm uma preparação basicamente doutrinária e, na maioria dos casos, desconhecem as normas e regras que orientam o direito do adolescente à assistência religiosa.

A pesquisa conduzida pelo Iser, intitulada “Filhos de Deus” (2010), com apoio da Secretaria de Direitos Humanos, sugere que os pressupostos dos agentes institucionais e dos assistentes religiosos são equivocados: os indicativos são de que não há uma associação entre a posse de crenças religiosas e os atos infracionais: 72% dos adolescentes que estão nos sistemas do Amazonas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (estados pesquisados) se sentiam identificados com uma religião antes de ingressarem no sistema; 61% consideravam a religião uma base de valores e crenças importante em suas vidas; 71,5% freqüentavam uma instituição religiosa, sendo que 31% mais de uma vez por semana. Neste sentido, segundo os dados apurados, há tanto adolescentes identificados com a religião no sistema socioeducativo quanto jovens sem esta identificação.

Isto significa que a atuação sistemática dos religiosos junto aos adolescentes pode efetivamente torná-los mais próximos da religião, mas não mais distante da realidade social que os aproxima e os “empurra” para o cometimento de atos infracionais.

Desta forma, é preciso uma ampla capacitação de todos os agentes envolvidos na provisão da assistência religiosa, de modo a romper as práticas ainda arraigadas de tutela dos adolescentes e de utilização da religião como instrumento de culpabilização moral dos jovens. Para isso, é necessário que os agentes institucionais, os religiosos, os operadores de direito e as instituições que lutam pela defesa dos direitos da criança e do adolescente discutam e aprofundem os seus entendimentos sobre o significado da assistência religiosa no sistema socioeducativo.

O Rio de Janeiro é o estado que está à frente nesta discussão. Primeiro por ter trazido este tema para a agenda de debates e pesquisas, redundando na publicação “Pescadores de Homens” (Iser, 2010); e depois por estabelecer um fórum com membros do governo (DEGASE), da Universidade, dos Religiosos e de ONGs.

O segundo passo foi dado pela Secretaria de Direitos Humanos que incorporou no Observatório de Boas Práticas, a discussão do tema, chamando para o debate todos os gestores dos sistemas socioeducativos. O tema está colocado, os primeiros passos foram dados, já há referências a serem consultadas. Cabe agora a contribuição de todos os envolvidos na luta do direito das crianças e adolescentes para que este tema saia da invisibilidade; o aprofundamento das discussões em cada estado para o aperfeiçoamento institucional; assim como, o aporte de novos dados e análises por parte dos grupos de pesquisas das Universidades. Todo este esforço tem como objetivo fazer valer a condição de sujeitos de direitos dos adolescentes em privação de liberdade, tal como estabelecido pelo ECA.