Caio Dias e André Rodrigues
Caio Dias: antropólogo, mestrando do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ (PPGAS – Museu/UFRJ)
André Rodrigues: cientista político, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Nos dias 14 e 15 de Setembro de 2009 ocorreu o julgamento do que ficou conhecido como “Chacina da Baixada”. O crime, cometido por um grupo de policiais militares, contou com grande repercussão à época por conta de suas características pouco comuns: primeiro o número de mortos, 29; segundo, o modo aleatório como foram escolhidas as vítimas. A configuração do crime foi geográfica, tanto no que diz respeito à seqüência das mortes, que foram articuladas ao longo de um percurso bastante claro entre as cidades de Nova Iguaçu e Queimados, quanto por sua justificativa melhor aceita: demarcação de território. A troca do Comandante do 20º Batalhão da Polícia Militar e a imposição de uma corregedoria mais rígida, teria motivado a ação. O ponto, assim, era mostrar quem detinha de fato de poder na região.
Algumas questões com relação ao julgamento merecem discussão. A presença de familiares de vítimas, por exemplo, foi significativa e o modo como participaram do ritual foi afirmadora de alguns pontos que remetem não apenas ao caso específico, mas que trabalha para que se possa pensar no modo como se lida com a violência enquanto vítima e as modificações que isso traz para a vida desses sujeitos. A configuração do judiciário também merece considerações, especialmente no modo como operam certos significados na qualificação de instituições e pessoas num processo fluido cujo comprometimento é com o objetivo específico da fala, independente do que liga esses significados ao que pretendem qualificar. O modo como a imprensa é mobilizada durante o julgamento, por fim, é significativo, seja pelos familiares de vítimas seja pelos membros do judiciário.
A movimentação dos familiares das vítimas começou antes do julgamento; estavam presentes – em número bastante significativo – parentes de vítimas de outros crimes. Foram penduradas faixas e cartazes nas grades do Fórum, com fotos das vítimas e mensagens. O objetivo, para além de lembrar os parentes mortos, é conseguir mobilizar mesmo as pessoas não ligadas diretamente à Chacina: há uma preocupação recorrente com a visibilidade do julgamento. No mesmo sentido, os familiares se ressentiram da pouca presença de imprensa para noticiar o julgamento. Uma noção recorrente é a de que esse tipo de visibilidade faria com que outras pessoas se importassem e, a partir disso, ocorreriam mudanças, de modo que outras pessoas não precisassem sofrer os mesmos problemas vividos por eles.
Outra ação importante antes do começo do julgamento foi a realização de uma oração. Os familiares deram as mãos em um círculo e, num tom de discurso, foram ditas palavras tendo por base o fato de que “a morte de seus parentes não teria sido em vão; e que Deus concederia essa vitória”. Nesse momento foi reiterado que “a vitória no julgamento” não se trataria de algo que lhes dizia respeito individualmente: a dívida era com a sociedade. Após essas palavras iniciais, foram rezados um Pai-Nosso e uma Ave-Maria.
Esse discurso acaba por evidenciar que se trata de um modo específico de lidar com a condição de familiar de uma vítima da violência. São pessoas que se apóiam mutuamente num tipo de trabalho que chamam de militância e a presença nos julgamentos é um dos definidores desse tipo de prática. Naturalmente a comoção incitada por um crime tão específico quanto a Chacina da Baixada deve ser considerada; mas a dimensão de escolha pelo que chamam de “engajamento” há que ser considerada. Uma marca material desse tipo de escolha está nas blusas com fotos das vítimas que todos os familiares usam; é um modo de serem identificados. Na oportunidade do julgamento havia algumas pessoas que não eram familiares, especialmente pesquisadores, que foram presenteados com blusas. A adesão é, portanto, valorizada pela quantidade de pessoas.
Na oportunidade do julgamento estavam presentes também familiares dos policiais acusados. A audiência estava dividida em duas partes, uma reservada para estes últimos, e outra reservada para os familiares das vítimas. Os parentes das vítimas mostravam-se sempre preocupados com o comportamento dos parentes dos acusados. As únicas manifestações de apoio vistas como legítimas eram as suas próprias: de alguma forma, aqueles pais, mães, irmãos, etc. eram um pouco responsáveis pelos crimes cometidos.
Percebe-se, ainda, uma classificação unívoca tanto dos policiais como de seus parentes: a reação quando alguma testemunha de defesa buscava ressaltar características positivas dos acusados era de descrença. Normalmente estas testemunhas mobilizavam o fato daqueles policiais serem “trabalhadores” e que, portanto, eram dignos de confiança e incapazes de cometerem aqueles crimes. Dois dos acusados, ainda, declararam-se evangélicos, convertidos desde a data do crime.
Os parentes das vítimas parecem conhecer bem os policiais acusados; têm familiaridade com sua conduta anterior ao crime: os acusados já transitavam pelas comunidades e tinham fama estabelecida. O julgamento, deste modo, dramatiza e evidencia uma prática corrente no cotidiano, mas oculta do ponto de vista de seu conhecimento por parte do poder público e da arena pública de modo geral.
Esses familiares foram colocados em relação exatamente por conta da Chacina, sendo estabelecidas, então, obrigações entre eles que não são incentivadas pela afinidade (apesar disso, eles se cobram mutuamente por um tipo de amizade). A questão que se coloca, assim, é o modo como eles são vistos como grupo pela justiça: há dois processos, este na Vara Criminal, pela condenação dos acusados, e um outro na Vara Cível, contra o Estado, em busca de indenizações.
As ações de um familiar, assim, podem comprometer todo o processo. Essa situação pode ser vista na preocupação em “conseguir se controlar” durante o julgamento. É importante “não fazer escândalo”, já que uma atitude mais contundente ou emocionada de alguém da audiência poderia atrapalhar o processo, provocando seu adiamento. Quando foram mostradas fotos das vítimas e os laudos cadavéricos, por exemplo, vários familiares se retiraram, visivelmente emocionados, para não atrapalharem o ritual. O “comportamento” dos familiares foi elogiado recorrentemente durante o julgamento pelos promotores, advogados e juíza.
Outro ponto importante é o processo de aprendizado pelo qual esses familiares passam por conta dos crimes. A grande maioria deles é pobre e conhece pouco das instituições jurídicas e outros setores do poder público (Polícia, IML, Ministério Público, Juizados, Defensoria Pública). Mas a partir do crime, e da necessidade então instaurada de acompanhar o fluxo institucional pelo qual passam, eles aprendem todo um novo léxico, que precisam utilizar cotidianamente. Essa apropriação, naturalmente, se dá a partir de categorias pré-existentes, fazendo com que as definições soem inexatas aos ouvidos oficiais. De qualquer modo, há uma modificação estrutural, que acaba por ressignificar não só essa instância específica, mas que se enquadra numa dinâmica que se espraia para suas vidas como um todo.
Esse processo, assim, acaba por ser evidenciador da falta de acessibilidade das instituições públicas. O desconhecimento das funções básicas de cada um desses agentes é um dos caracterizadores de um contexto de exclusão que se mostra também de outras formas. No caso específico do julgamento era perceptível a dificuldade de identificar os papéis desempenhados pelos profissionais atuantes. Essa situação fazia com que fosse reforçada uma sensação de angustia. Isto porque aqueles familiares estiveram envolvidos num processo que não conseguiam compreender de modo efetivo. Restava oculto, dessa forma, o desfecho que buscavam para uma situação dolorosa com a qual conviviam já há quatro anos.
Os membros do judiciário, de seu lado, expressavam em seu comportamento a familiaridade com o processo. Não seria muito classificar o momento como de interação cordial. De qualquer modo, o julgamento representou também um encerramento para aqueles indivíduos que se viam envolvidos com o processo também há quatro anos. Ressalte-se que a comoção pública foi citada algumas vezes como fator agravante no lidar com o crime, que por si só já tem características bastante complexas.
Os promotores responsáveis pelo caso ressaltaram que a “Chacina da Baixada” redefiniu o termo, já que em nenhuma outra oportunidade no estado do Rio de Janeiro ocorreram tantas mortes numa mesma ação. Em suas falas foi reconstituído o percurso do crime; foram mostradas fotos de cada um dos locais e de cada um dos assassinados. Evidenciou-se o caráter aleatório da escolha das vítimas, tendo em vista a diversidade dos perfis encontrados. Foram mortos desde um aposentado de 65 anos até adolescentes de idades entre 12 e 17 anos, passando por pessoas de meia idade. Outra questão é que apenas duas das vítimas tinham passagem pela polícia; ambas sem gravidade. Os laudos cadavéricos, por sua vez, corroboraram esta característica do crime, já que em mais de uma das vítimas foram encontradas perfurações no crânio e em ambas as mãos por apenas um projétil; ou seja, a vítima estava rendida com as duas mãos na cabeça.
Os advogados de defesa ampararam suas teses num possível caráter político que estaria sendo associado aos assassinatos, já que alguns dos atores públicos responsáveis pela apuração do crime incrementaram ou começaram carreira política por conta de suas atuações na oportunidade da chacina. Foi feita ainda menção ao fato de que não havia como ligar as armas utilizadas com as dos acusados. Os laudos técnicos apresentados pelo Ministério Público foram desacreditados por uma “reconhecida” corrupção da Polícia Civil. De acordo com um dos advogados de defesa, “é só chegar balançando dinheiro, que as coisas se resolvem”. A defesa, portanto, procurou esvaziar os procedimentos construtores das provas; mas a estratégia escolhida fundamenta-se no senso comum, sem que fossem utilizados acontecimentos específicos do caso.
A mídia foi mobilizada em diversos momentos do julgamento. As imagens utilizadas nas falas do Ministério Público foram feitas por repórteres fotográficos. Os advogados de defesa, por sua vez, disseram que “a sociedade brasileira, especialmente o judiciário, se vê alimentada pela mídia sensacionalista” e lembraram de casos que foram amplamente noticiados como se houvesse certeza da culpa dos acusados, tendo sido reconhecida, posteriormente, a inocência dos envolvidas. Coube à mídia, ainda, uma espécie de policiamento da ação das instituições públicas após o crime, chamando-as a responder pelo andamento do inquérito e sua posterior denúncia e julgamento. Os advogados de defesa, por sua vez, atribuíram à exposição midiática do crime a participação da polícia federal na construção de inquérito, o que é, de fato, incomum em crimes deste tipo. Pode-se dizer, assim, que a imprensa foi mobilizada como um dos agentes envolvidos na caracterização do crime; ora em tom elogioso, como fiscalizadora vinda da sociedade, ora em tom acusatório, como responsável por parte de seus males. Seu uso como elemento retórico, ademais, reforça a fragilidade na caracterização dos fatos pelos agentes envolvidos no julgamento; a imprensa adquire, nesse contexto, importância como elemento constituinte do material que dá suporte ao julgamento.
O julgamento da Chacina da Baixada, portanto, colocou em contato direto os diversos atores envolvidos no crime e mobilizados em seus desdobramentos: familiares dos policiais e vítimas, advogados, promotores, juíza e imprensa. Nos interesses e obrigações de cada um desses agentes, nas suas falas e ações, pode-se ver a complexidade do crime em algumas de suas esferas.
Fica evidente que a Chacina não foi um fato isolado, mas se vincula a dinâmicas correntes e conhecidas no cotidiano, evidenciado pela afirmação de que os parentes de vítimas conhecem os autores e o modo como atuam. Salta aos olhos, contudo, que apesar de ser prática corrente e conhecida, se torna invisível do ponto de vista de sua caracterização pelos operadores de segurança e do poder público, ganhando visibilidade apenas em uma manifestação extrema que tende a ser vista como evento isolado e episódico.
Nesse sentido, seria mais proveitosa a interpretação da chacina não como evento episódico, mas como uma prática que – apesar dessa manifestação extrema – possui uma coerência com a lógica de uma atividade violenta consolidada, tendo como função última o controle territorial. O julgamento como via de caracterização destas práticas evidencia as dificuldades técnicas e retóricas desse trabalho de construção do fato, o que se confirma nas diversas apropriações da atuação da imprensa, na preocupação da audiência em ter uma conduta que não prejudique o andamento do ritual e na compreensão parcial que os familiares possuem do processo como um todo.
Cabe, portanto, pensar o quadro no qual se colocam tanto a Chacina da Baixada como seu posterior julgamento e buscar compreendê-los como expressão de um contexto mais amplo. Sem perder de vista o que esse crime representa como atentado aos direitos humanos, é no entender de suas condições de possibilidade que se pode formatar uma visão crítica e construtiva de uma sociedade menos violenta.